segunda-feira, 31 de maio de 2010

A Cin-Cinemateca

Nunca um defeito – que me merece todo o respeito, tal como um excesso, desde que não me fodam com patranhas – me pareceu tão adequado para qualificar a novela arrastada, burlesca, pobrezinha, em suma, epítome da lusitanidade, sobre a “vinda/não-vinda” da Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema para o Porto. Somos pobres, provincianos e estamos curvados, receptivos (faltam as feromonas), perante o poder ditado pela Capital. O Bénard, semideus, não queria, logo pelo dom emanado dos miasmas além-túmulo não se faz – como um oráculo tenebroso, lançando gritos, aflições e pragas através da corrupção da carne e da vetustez do espírito.
Sin Cinemateca – é como nos tratam, como bando de espanhóis que enchem os bolsos a uma corte de subsidiados que levantam o nariz e apontam o dedo, clamando por ventos e tempestades contra qualquer iniciativa que lhes roube a chama sagrada da cultura. E cá continuamos, no enquadramento bucólico do porto, como o Ícaro de Brueghel de cabeça e tronco mergulhados nas águas cediças, de traseiro virado ao deus iracundo pelo arrojo da sugestão – nem sequer houve tempo para o roubo da chama eterna que ilumina aquelas cabeças olímpicas, supra-sumos da intelectualidade e agentes exclusivos da cultura.
Basta olhar para a programação, e deixar destilar a inveja que me invadiu, arrasadora e pérfida, pela constatação da sua excelência, embora à custa da depredação dos corpos exauridos das regiões mais pobres da Europa a 27 – e, nesse momento, surge a ira pela diferença abissal entre a sumptuosidade asiática da Capital macrocéfala e os cenários de devastação humana que me rodeiam. Pecador sem remissão.
Oh, e como a Sra. Dra. (por lá tratam-se todos assim, pelos títulos, a que nem as salas de projecção conseguem escapar; esse novo-riquismo, snob, sine nobilitate, a jactância pequeno-burguesa, o triunfo dos porcos que finalmente se acham símiles dos humanos no poder), investida daquela sua farpa graciosa, em que tartamudeando, faz as suas piadinhas demagógicas e atestadas de soberba:

«Houve um abaixo-assinado [sobre a criação de um pólo da Cinemateca no Porto], como sabe. E acontecem algumas projecções na Fundação de Serralves em que, segundo me disseram... Por exemplo, no ciclo dedicado a Pedro Costa, não sei se o realizador se alguém por ele, perguntou, perante o número exíguo de espectadores, se eles estavam ali em representação dos 4970 signatários.»
Maria João Seixas, Ípsilon, 28/05/2010 (em entrevista a Kathleen Gomes).
Ciclo, mas que ciclo? O extinto preparatório? Um cripto-ciclo com duas projecções duas (Ne change rien de 2009, e O Sangue de 1989) num auditório que não reúne as condições necessárias para uma projecção cinematográfica de qualidade (visual e sonora) e minimamente confortável?
Não há salas cheias, sem se readquirirem os hábitos que se perderam, ou que nos foram roubando. A outrora considerada cidade ibérica com maior número de cinéfilos, vai-se divertindo com os popós nos Aliados e na Boavista (com aplauso de veneração da Capital), as lantejoulas brejeiras e revisteiras à Praça D. João I e o gordo dos concursos à Sá da Bandeira. E chega.
E continuo a olhar para o programa, e a ira e a inveja consomem-me pelos trezentos quilómetros de distância.
Sin-Cinemateca. Para os mais eruditos, latinistas, Sine-Cinemateca. Besuntai-vos com ela e com as soluções de compromisso com os mortos. Bastava um arquivo digital que, com o dinheiro de todos nós, replicasse no Porto e noutras cidades com um razoável número de cinéfilos (Coimbra, Braga ou Vila Real, por exemplo), o programa exibido na Barata Salgueiro.
Polanski, Spielberg, Visconti e… Mário Barroso, uma nota cómica (a talho de foice)
A Cinemateca promoveu uma pequena e curiosa iniciativa (ainda em realização) denominada “Os Filmes dos Presidentes”, que se enquadra nas comemorações do Centenário da República, nesse sentido «a Cinemateca entendeu convidar quem ocupa e ocupou o mais Alto Cargo da República para a realização deste Ciclo, apresentando um filme da sua escolha.» Eis a selecção:
  • Cavaco Silva escolheu O Pianista (The Pianist, 2002), de Roman Polanski;
  • Jorge Sampaio elegeu o grandioso O Leopardo (Il Gattopardo, 1963), de Luchino Visconti;
  • Ramalho Eanes optou pelo mais prosaico e militarista O Regaste do Soldado Ryan (Saving Private Ryan, 1998), de Steven Spielberg;
  • Mário Soares, bem ao seu estilo, laico e republicano (agora fala-se muito da ética desta última), sobrinhou (foi bastante papista) O milagre segundo Salomé, do realizador português Mário Barroso.
Como diria alguém que conheço e muito prezo: uma beleza!

sábado, 29 de maio de 2010

Temor

Ishiguro teve sorte, ou procurou-a, no momento em que vendeu os direitos do seu romance Os Despojos do Dia à indústria cinematográfica. Não sei se os vendeu bem, sei, no entanto que, por mais ou menos ponderado que se haja revestido o seu o acto de cedência, a obra-prima, Booker Prize de 1989, ficou na melhor das mãos; foi arrebatada por uma das uniões mais bem-sucedidas no escasso mundo dos verdadeiros artesãos da sétima arte, a Merchant Ivory: James Ivory realizou e Ruth Prawer Jhabvala escreveu o argumento. Independentemente dos prémios, das críticas e das receitas, Os Despojos do Dia (The Remains of the Day, 1993) – a sua beleza cénica, o seu bem doseado pathos (veja-se a epítome da fleuma e da estrita observância no cumprimento do dever em “James Stevens”), o delicado rendilhado da trama, o par eterno Emma T. & Anthony H. – ficará de forma indelével ligado ao firmamento da indústria cinematográfica. A ele já voltei meia dúzias de vezes sem que se houvesse manifestado em mim qualquer sinal de cansaço.
Kazuo Ishiguro pertence ao pequeno grupo de escritores britânicos nascidos nos anos 40 e 50 do século passado cuja bibliografia dificilmente chegará à dezena nos tempos mais próximos. É um perfeccionista, e essa qualidade detecta-se em todas as suas obras. Entre a publicação das suas histórias, o autor de origem japonesa escreveu dois argumentos para cinema para um filme de Guy Maddin (A Canção Mais Triste do Mundo; The Saddest Music in the World, 2003) e outro para James Ivory (A Condessa Russa; The White Countess, 2005), ambos premiados mas bem longe dos holofotes do sucesso. Hoje, sabe-se que o melhor romance (opinião pessoal) (Nunca Me Deixes; Never Let Me Go, 2005) do mestre Ishiguro está a ser transposto para a sétima arte – encontrando-se já na fase de pós-produção, com estreia marcada nos Estados Unidos para os primeiros dias de Outubro deste ano – pelo génio retorcido do argumentista preferido do “blasonado sem causa” Danny Boyle, Alex Garland (n. 1970). A realização ficou a cargo do norte-americano Mark Romanek (n. 1959), que para além de haver dirigido apenas duas longas-metragens ao longo da sua carreira, que começou com a comédia Static de 1985, e terminou com o mais que medíocre projecto de thriller Câmara Indiscreta (One Hour Photo, 2002), realizou uma série de telediscos para Bowie, Morrisey, Madonna, Janet e Michael Jackson e para bandas como os R.E.M., Weezer, Sonic Youth ou os Red Hot Chili Peppers.
No elenco, já disponível na base de dados do IMDB, constam nomes como Carey Mulligan no papel da doce “Kathy”, Charlotte Rampling (que, atendendo às características da personagem, ficará bem no papel da inescrutável “Miss Emily”), a leighiania Sally Hawkins e a inevitável Keira Knightley, para além do jovem grande actor Andrew Garfield – os sentimentos mistos que me despertaram, também não auguram nada de bom.
Um temor apoderou-se de mim. E é sempre assim, quando uma obra literária que me encheu as medidas é adaptada ao cinema. Ainda bem presente na minha memória está a adaptação desastrosa em 2007 do melhor romance de Ian McEwan, Expiação (Atonement, 2001) pela dupla Joe Wright & Chris Hampton, uma película que parecia filmada com um scanner (remissão para dois textos aqui escritos) que retirou toda a beleza subliminar da já canónica obra de McEwan.
Só me resta esperar para nestas páginas, se ainda por cá andar, poder zurzir na obra fílmica que se anuncia, tal é a energia acumulada pelos sentimentos de temor/cólera. Porém, uma coisa afigura-se-me como certa, nestes casos qualquer lampejo de brilhantismo pode ter o efeito pernicioso de fazer soltar a minha veia encomiástica, tão baixas são as expectativas – pernicioso? Porquê? Se a imagem que possais ter deste que vos escreve não me preocupa…
Nota: no ficheiro fotográfico acima (da esquerda para a direita), Keira Knightley (“Ruth”) e Carey Mulligan (“Kathy”) no local das filmagens.

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Cinefilia

Do filme Filadélfia (Philadelphia, 1993), de Jonathan Demme, com Tom Hanks (como Andrew Beckett) e Denzel Washington (como Joe Miller):
Ficha Técnica (som):
  • Ópera: Andrea Chénier (1896)
  • Compositor: Umberto Giordano (1867-1948)
  • Soprano: Maria Callas (1923-1977), como Maddalena di Coigny
  • Ária “La Mamma Morta”, 3.º Acto
  • Gravação: Ao vivo, Scala de Milão, 1955 (EMI Classics)
  • Maestro: Antonino Votto (1896-1985)
  • Orquestra: Scala de Milão

quinta-feira, 27 de maio de 2010

O Peixe-Gato e a Cosmogonia de um Mancuniano

Júbilo e resignação. Uma alegria desmedida quando, por mero acaso, descobri que a obra-prima do realizador britânico Mike Leigh, Nu (Naked, 1993) foi finalmente editada em DVD em Portugal*, seguida da assunção da triste realidade materializada no conformismo que de imediato se abateu sobre o meu estado de espírito volátil – arriscando-me a citar Dalí através de Orwell, citação assestada em obra não escrita por Rui Santos, que «toda a vida quando vista de dentro, não passa de uma série de derrotas» –, porque nasci neste canto geográfico da finisterra, onde tudo o que potencialmente poderá ser apreciado como arte pertence a dois tipos de categorias de acesso restrito. A primeira categoria tem um cariz mais prático, físico, de mera locomoção; e a segunda resulta da estrutura da mentalidade de um povo: filistina, utilitarista e consumista. A primeira porque, pelos custos de transacção, se constitui numa ínfima minoria a parte dos portugueses que pode deslocar-se ao concelho (e não me enganei na circunscrição administrativo-geográfica) que absorve 63% do bolo monetário reservado à cultura – é aí que quase tudo acontece –, criando os necessários hábitos de consumo dos bens e das manifestações culturais; a segunda manifesta-se na falta de edição (sob que forma for) de marcos referenciais da cultura universal, por cedência ao imediatismo do espectáculo pirotécnico de um pequeno conjunto de baboseiras de valor acrescentado nulo, ou melhor, de depreciação progressiva de alguma intelectualidade residual que ainda subjaz findo o período ontogenético.
Todavia, mesmo considerando todas as dificuldades acima referidas, celebremos o pouco do muito que poderia ser feito. Finalmente, iremos ter as deambulações do mancuniano em Londres, Johnny (a grande interpretação do actor britânico, nascido em 1963, David Thewlis) e as suas asserções existencialistas derramadas nos escombros da degradação da sociedade ocidental contemporânea. Um filme para ver e rever, e a ele voltar regularmente.
Por último, o peixe-gato lascivo já tem distribuição garantida em Portugal. As tais cabriolas ronronantes aquáticas que fazem parte do filme vencedor da Palma de Ouro da edição deste ano do Festival de Cannes, anunciado aqui, e que se apresenta sob o título O Tio Boonme que se Lembra das Suas Vidas Anteriores, realizado pelo tailandês Apichatpong Weerasethakul*. Entretanto, fica o aviso para as senhoras (e não só) mais sensíveis a este tipo fauniano de frenesim interclassista: cuidado com as imitações e deixem de lado o espadarte por este poder vir a revelar-se como uma experiência potencialmente mais pungente. E isto, apesar da premência de novas formas de alcançar receitas turísticas para a Madeira – por favor, deixem, neste aspecto, a caridade de lado (ainda que me assemelhe a um bronze que soa ou a um címbalo que retine**…)
Notas:
* saúde-se a Midas Filmes por haver permitido, através da sua actuação enquanto agente de cultura, a comunicação destas duas novidades.
** 1 Coríntios 13:1

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Rui Flaubert Santos

Fui alertado, enfim, para um momento televisivo único, na óptica dos interesses do Rui Santos, designadamente, o Rui Santos citou Gustave Flaubert a propósito das recentes vitórias de José Mourinho. O acontecimento desportivo do ano em Portugal foi forjado em directo na bigorna da erudição, para a meia dúzia de pessoas (não contando com o Barbas, o Diabo de Gaia, o Advogado Incendiário e o Lampião de Canelas, estes últimos vulgarmente conhecidos por Pragal Colaço e Ricardo Costa, respectivamente) que ainda aguenta assistir a 23 segundos consecutivos daquele programa que vai para o ar na Benfica TV2… perdão, na SIC-Notícias todos os domingos à noite. O assunto, que decerto proveio de uma inspiração oracular, era o tal treinador bicampeão por um clube português – presidido por essa pessoa desprezível e monstruosa, chamada de Pinto da Costa –, vencedor do campeonato e da Liga dos Campeões logo, contra a óptica dos interesses dos invejosos, no ano da “fruta” e do “café com leite”, 2004 – ainda houve tempo, enfim, na óptica dos interesses da hermenêutica comportamental, designadamente de classificar de folclóricas (!?) as vitórias de Mourinho no FC Porto. Aquela, enfim, cabeça...
Na óptica dos interesses de Flaubert, eu estaria designadamente preocupado, porque, “ai, ai, ai” (1.ª andamento, adágio), “ai, ai, ai” (2.º andamento, andante con grazia ed intimissimo), “ai, ai, ai” (3.º andamento, vivace giocoso), o paradigma da verdade literária eclipsou-se na óptica dos interesses da verdade, ela mesma, para o paradigma da “verdade desportiva”, aquilo que, na óptica dos meus interesses (os dele), apelido de verdade encarnada ou, nomeadamente, enfim, entunelada.
Mais grave ainda, o enfarpelado da brilhantina do comentário desportivo nacional, cita-se a ele próprio para citar o eminente escritor francês oitocentista. Ou seja, na óptica dos interesses do ego, dele próprio, escreveu um livro (o que por si só já é de levar às lágrimas pelo choque – ele escreve! Na óptica dos interesses de John Carpenter quando realizou em 1988, nomeadamente, enfim, Eles Vivem) que contém uma citação, designada, nomeada e efectivamente do autor natural de Rouen retirada de… o Citador. Senão, experimentem perguntar-lhe de que obra, opúsculo, panfleto, ou até de que pedaço de papel higiénico manuscrito, retirou ele (o Rui na óptica dos interesses dos Santos) a seguinte frase, de uma originalidade inigualável (pelo menos a costureira Alice de Caneças, a tal Lili, recita-as de sua lavra):

«Para se ter talento é necessário estarmos convencidos de que o temos.»

O que no caso do citador em segunda mão em apreço, não é, designada e manifestamente, suficiente, na óptica dos seus interesses, por muito incomensurável que, enfim, fosse o seu convencimento.
Ver aqui, na óptica dos vossos interesses: os 90 minutos completos (sacrificai-vos, designadamente, ó vítimas da fome), ou, enfim, designadamente ligar-se ao minuto 6 mais 15 segundos (nota de tristeza: termina, enfim, aos 6 minutos e 38 segundos).
E logo hoje, que se comemoram os 6 anos dos feitos heróicos que culminaram no Estado da Renânia do Norte-Vestfália, em Gelsenkirchen.
Nota: este artigo foi elaborado, enfim, na óptica dos interesses do novo acordo ortográfico-gramatical rui-santês (em vigor por decreto balsemónico todos os domingos das 23 às 24 horas, designadamente no canal 5 da TV Cabo).

domingo, 23 de maio de 2010

Palma de Ouro – Cannes 2010

Como seria de esperar, Tim Burton e os seus pares premeiam um filme nos domínios do fantástico, repleto de criaturas monstruosas, que toca o temas da transitoriedade da morte, fundamentada na transmigração das almas e na reencarnação:
Lung Boonmee Raluek Chat (título transliterado que, em tradução livre, significa Tio Bonmee, Aquele que Recorda as suas Vidas Passadas), do realizador tailandês Apichatpong Weerasethakul.
Do realizador apenas conheço o sofrível, pseudomístico, entediante e tenuemente homoerótico, Febre Tropical (Sud Pralad, 2004), tendo vencido o Prémio do Júri na edição de 2004 do festival francês.
Os críticos das páginas especializadas do indieWIRE e do Salon acertaram no vencedor tendo-o elegido como o melhor filme na competição oficial. No entanto a película originária da Tailândia está longe de ser consensual. Ouvido há coisa de 20 minutos no canal France 24, pela boca da crítica cinematográfica norte-americana Lisa Nesselson: “Como é que um filme em que existe uma cena de sexo entre uma mulher e um peixe-gato pode ganhar a Palma de Ouro?
Eis o trailer, enquanto aguardamos (porventura em vão) pela sua distribuição em Portugal:
Nota: ver aqui ou aqui os restantes vencedores.

sábado, 22 de maio de 2010

No dia em que Sirk e Visconti se fundiram na tela

Uma inquietação sobre a realidade que chegou até mim em caracteres negros nas edições do dia dos matutinos lusos – podia haver-lhe chamado uma inflamação, não fora a primazia comodista e superficial dada à emanação lúbrica de pólenes fecundadores que, afagados pelo vento, acasalam com os meus olhos e as minhas mucosas nasais – sobreveio quando li que foi criada a primeira célula artificial em laboratório por um tal de Craig Venter. E se uma inflamação é potencialmente mais abrasiva que uma inquietação, não há nada como fazer cair sobre o assunto um manto de silêncio, à laia de um Donoso, escarninho, expondo ao ridículo o reaccionarismo literário de antanho e por curiosa anteposição ao seu revivalismo defendido por tão ilustre gente; aquela turba que, ainda hoje, beija os pés ao sumo-sacerdote James do Bosque – reduzido à condição de poeira episódica pelo canonizador Bloom, que desabrocha (e não, não me refiro aqui ao cúmulo da inocência) e é de imediato varrida pelo vento da irrelevância, concluindo pela inexistência do tal do Bosque na crítica literária, nem para corroborar o arcaico princípio cartesiano.
Deixemos a botânica, o Bosque a Desabrochar, as rememorações de Donoso, o realismo e a lanugem das gramíneas e voltemos ao manto de silêncio.
Entrei numa das vinte salas do UCI para assistir a mais um filme não-americano. Se na semana passada foi o claustrofóbico israelita, vencedor do último Leão de Ouro em Veneza, para esta reservei um italiano do, para mim, quase desconhecido realizador siciliano Luca Guadagnino (n. 1971), Eu Sou o Amor (Io sono l’amore*).
Decorridas duas horas, saí da sala como uma sensação estranha de enfartamento – não encontro melhor descrição para a espécie de mal-estar de que parecia padecer. Ainda os olhos se habituavam à luminosidade exterior e dei por mim a divagar sobre se tinha acabado de ver uma película realizada por um mutante que houvesse assumido, por um lado, a brusquidão, a violência psicológica, os zooms repentistas de Visconti e, por outro, o melodrama vívido, delirante, em technicolor de Sirk, como Imitação, antes de se despedir da América que o acolheu durante os anos do terror nazi. Focando na parte italiana da mimese (sintetizada no genoma do mutante), há, de facto, laivos de O Leopardo (Il gattopardo, 1963) como alguns lhe apontam. Todavia o que afluiu à minha mente cinéfila foi sobretudo o ímpeto e o delírio de Os Malditos (La caduta degli dei, 1969) e o lado mais áspero de Violência e Paixão (Gruppo di famiglia in un interno, 1974). Mas também há Haynes – talvez um dos braços do mutante, ou mesmo parte do tronco – e o seu premiadíssimo Longe do Paraíso (Far from Heaven, 2002).
Tilda Swinton é soberba. Arrisco-me mesmo a proferir uma sentença abonatória: neste momento, é a melhor actriz em actividade. Guadagnino é espalhafatoso na cor, nos grandes planos, na, a título de exemplo, duradoura cena de sexo quase explícita, numa, de certo modo estafada, metáfora imagética com abelhas, insectos, flores e polinizações, de onde sobressaem os cumes alcantilados das montanhas envolventes; é, em suma, um abusador do simbolismo, da mensagem subliminar que qualquer mente mais atenta não deixará de tentar descodificar, culminando com o plano da “caverna obscura”, já depois da ficha que anuncia o elenco e que os pressurosos filistinos já não vêem – quais bonecos articulados que tratam os créditos finais com menor apreço que o manual de instruções de uma loção capilar. Reflexos platónicos? A renúncia à descoberta da verdade, o triunfo do amor corpóreo como paralisia e fautor do acomodamento nas trevas da caverna?
Assaltam-me, ainda agora, sentimentos contraditórios: admiração e desassossego, o entranhado, por anos de aprendizagem, horror ao melodramático e a descoberta da beleza numa cascata de emoções a brotar do celulóide.
Obra-prima? O tempo e um novo visionamento o dirão. Por enquanto, não chegarei ao cúmulo de lhe justapor o rótulo OFNI (Objecto Fílmico Não Identificado), como, directamente de Cannes e com alguma graça, escreveu Olivier Delcroix acerca do Ricky de Ozon nas páginas do Le Figaro.
Nota: *título baseado na famosa ária do 3.º acto da ópera Andrea Chénier (1896) do compositor italiano Umberto Giordano (1867-1948). No filme é usado o registo da ária interpretada por Maria Callas (gravada ao vivo no Scala de Milão em 1955), tal como aparece no momento mais dramático do filme de 1993 de Jonathan Demme Filadélfia (Philadelphia), cujas imagens surgem simbolicamente no leito conjugal de Emma (Swinton) e Recchi (Delbono). Do libreto, os últimos versos:
«(…)Eu sou o amor, eu sou o amor, amor,
E o anjo aproxima-se, beija-me,
E é o beijo da morte!
O corpo de moribunda é o meu corpo.
Então leva-o.
Eu sou já uma coisa morta!» [versão: AMC]

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Luz. Trevas. Impotência.

[Eis a minha contribuição para o exercício de memória sobre os Joy Division, notavelmente organizado pelo Manuel A. Domingos no seu blogue sob o título Licht und Blindheit (inspirado no EP de 1980, com número limitado de cópias, da pequena e selectiva editora francesa Sordide Sentimental, e no ensaio de um dos seus fundadores, Jean-Pierre Turmel), a propósito da passagem dos 30 anos da morte trágica de Ian Curtis.]
Contacto
Fim dos anos 80. Vivia nas guitarras estridentes de Joey Santiago, nos gritos animalescos de Iggy, nas ondas emplumadas de Bowie, na voz cavernosa de Murphy – curioso trio este, a iguana, o camaleão e o vampiro –, e ao lado, como meio libertador da overdose sonora dos incessantemente repetidos, repousava o quarteto de Manchester, usado mas não abusado, ouvido por letargia, porém não cravado na memória de uma mente febril pré-universitária. Talvez o Substance, compilação de 1988.
Foi S. que me iniciou no mundo sepulcral da voz cava de Ian, das batidas hipnóticas e continuamente repetidas numa caixa de ritmos de Morris, dos abalos sísmicos provindos do baixo de Hook, da melodia – foram sempre acordes melódicos – que se soltava da guitarra de Sumner: “Transmission”, “Passover”, “Dead Souls”, “She’s Lost Control”, “Leaders of Men”, “Shadowplay”, “Novelty” e “A Means to an End”; mesmo antes de “Komakino”, “Love Will Tear Us Apart” ou de “Atmosphere”. Mas vão sendo todas repetidamente queimadas pelo laser a pulsar entre “zeros” e “uns”.
Foi S. na sua voz carente, doce e afectada, entre afagos e efervescências sensuais, que me levou a trocar o pançudo Charles Thompson por Curtis no pedestal cimeiro dos veneráveis. Descíamos as escadas daquele bar escavado no subsolo da capital transmontana, mas já antes corríamos febrilmente rumo à boca do monstro que soltava os sons de um baixo gótico cuja reverberação sentíamos cá fora sob os nossos pés, que lá dentro parecia ressumar – lágrimas espessas de suor delirantes – daquelas paredes graníticas cavernosas: BarBaros, foi esse o local da epifania. Entre vapores alcoólicos e gestos desregrados de lubricidade, fui aluno competente da história narrada em surdina sobre os factos que conduziram o quarteto para o abismo e para loucura necrófila que se lhe seguiu, deturpando comportamentos, ocultando factos, gerando patranhas pós-modernas, deificando excessos que não eram tolerados, pela sede mercantilista que se comprazia em vender os miasmas da morte em pacotes factícios.
Ingestão
Num artigo publicado por Jon Savage no The Guardian em 2008 por esta ocasião de hábito rememorativo, todavia a propósito da estreia do documentário Joy Division escrito pelo próprio e realizado por Grant Gee, o escritor, jornalista e musicógrafo britânico faz uma dissecação do interior de Curtis e dos seus estados de alma, concluindo pelo seu medo primordial do isolamento, que ressalta das letras febrilmente marcadas a maiúsculas, entre a luz ofuscante e o desespero sombrio, na dialéctica luz e trevas, que se sintetiza na urgência em sentir o toque e o calor humanos.
Em suma, apesar da miríade de perspectivas que cada fã tem das atribulações do sujeito idolatrado, sempre entendi que foi num violento sentimento de impotência que a vida e o tempo de Ian se fizeram curtos, que de alguma forma apura e explicita todos os medos, apreensões e enfados, ou talvez, rivalize com a dilacerantemente percebida auto-estima nula.
O impulso corajoso da emancipação prematura, foi-se aniquilando com a necessária obediência a um ritual para pôr uma máquina a funcionar, que se foi montando à volta dele à porta de uma sala de espectáculos fechada que acabara de receber o Camaleão.
Ian era o fulcro, a mola impulsionadora, o vórtice aglutinador do único caminho para o sucesso, e ele sentia-o como um fardo que pesava toneladas, que o arremetia para as trevas de um poço húmido e profundo – afinal, de onde partiu toda a engenharia do processo criativo.
Dando um pequeno salto histórico. Desencadeou-se a sua epilepsia. A vizinhança da digressão para os Estados Unidos foi o catalisador de um cadinho efervescente de circunstâncias interiores rumo à catástrofe. A impotência perante um futuro antecipado como esmagador debaixo das luzes da ribalta, a conciliação entre a vida provinciana e anódina com Deborah e Natalie (n. 1979) e o arrojo de Annik, entre o prazer de compor e sobretudo de escrever, e a entendida função de pedra angular de uma entourage que, sem ele, se desfaria como um castelo de cartas – como, aliás, se veio a provar: Hook, Morris e Sumner, mas também Gretton e Wilson, e por fim a própria Annik. Os Joy Division esfumaram-se numa nuvem de cinzas – tão bem fotografada por Corbijn no teledisco apocalíptico de “Atmosphere” (1988), como no biopic Control (2007) –, e com o seu fim terminou para sempre um sub-estilo que não era pré-, pós-, ex-, proto- (juntem-se-lhes os prefixos que quiserem): pop, rock, punk, gótico, new wave, electrónico, garage, e por aí fora.
Depois da digressão continental nos primeiros meses de Janeiro de 1980, veio o ritmo inexorável do estúdio. Concluiu-se o segundo e último álbum do efémero grupo: Closer. O mais arcano, inexpugnável e transcendentalmente inacessível a não iniciados pela, talvez única, corrente esotérica que nasceu de geração espontânea e cujo grão-mestre morreu no momento em que aquela se erigiu no vento de Macclesfield e se difundiu pelo mundo através das ondas etéreas de uma sonoridade irrepetível.
Gozo
Entre Closer (“mais próximo”, com o frontispício tumular baseado numa fotografia de Bernard Pierre Wolff no Cemitério Monumental de Staglieno, Génova) e outros dispersos surgiu “Komakino”, levando à letra após uma simples tradução do alemão “Cinema Coma”. Foi em Junho de 1980, já Ian Kevin Curtis garroteara as suas súplicas na madrugada de 18 de Maio de 1980, que aquela voz cavernosa e implacável emergiu das trevas, gravada em milhares de círculos rotativos de plástico flexível, e cantou:
«A sombra que se manteve na beira da estrada / Faz-me sempre lembrar de ti.» [versão AMC]

terça-feira, 18 de maio de 2010

30 anos - O Melhor de Sempre

Ian Kevin Curtis
(15/Julho/1956 - 18/Maio/1980)
«Human beings are dangerous and they call me in the dark.»
(verso retirado da letra de "At A Later Date" (1977), Warsaw)

 
Vídeo elaborado por um fã, com imagens do memorável e brilhante filme de Anton Corbijn, Control (2007):
  • Sam Riley como Ian Curtis
  • Samantha Morton como Deborah Curtis
  • Som de fundo: "No Love Lost" (1978), Warsaw

quinta-feira, 6 de maio de 2010

festina lente

«Recebia a reforma de professor, mais o pequeno rendimento de um plano de poupança livre de impostos, e ainda os juros de uma velha caderneta bancária com os números escritos em caracteres simpáticos, entrecortados e pouco nítidos.
As estações sucediam-se numa amálgama, cada ano era uma névoa atordoada. Como o tempo nos livros. Num livro, o tempo escoa-se no hiato de uma frase, muitos meses e anos. Escrevendo uma palavra, passa uma década. Não é assim tão diferente aqui fora, na idade dele, no mundo sem margens.»
Don DeLillo, Submundo, p. 240. [Porto: Sextante, 1.ª edição, Abril de 2010, 840 pp.; tradução de Paulo Faria; obra original: Underworld, 1997]