sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Escuridão

«Já tudo escureceu;
contudo ainda resta algum dia
suspenso de onde veio a noite que chegou primeiro.

É de sempre este resto de dia
e acompanha-a pelo céu em busca das estrelas frágeis.

A noite, uma vez,
compreenderá que ele vem do mesmo lado que ela.
»

Jorge de Sena, “Nocturnos: V” (1941), in Antologia Poética, pág. 34.
[Porto: Asa, 2.ª edição, 2001, 304 pp.]


Regressa Auster às livrarias portuguesas em edição lusa. A Asa anunciou a publicação do último romance do escritor de Newark, nascido em 1947, Homem na Escuridão em Novembro, em dia que desconheço [via blogue da revista Ler].
A meio de Agosto, dei aqui a notícia da sua publicação mundial, atrevendo-me à tradução das primeiras páginas da versão original norte-americana.
Apenas três meses de desfasamento, a que se acresce a garantia, dada pela nova editora responsável pelas obras de literatura de ficção da Asa, Carmen Serrano, da edição simultânea do original americano e da versão portuguesa em 2009 do 13.º romance do poeta do acaso. O manuscrito está pronto, a obra chamar-se-á Invisible (como referi aqui) e ao que parece diferente dos romances anteriores marcadamente metadiegéticos, apesar de Auster não abandonar de todo o (para ele) viciante artifício metaliterário.
A propósito da sua enorme popularidade na Europa, em comparação com a quase indiferença norte-americana, Auster responde numa entrevista dada no início do mês ao jornal espanhol El Periódico [transcrição da notícia; tradução livre: AMC]:
«“Nos Estados Unidos corre tudo bem”, responde resguardando-se na iminência da pergunta do milhão de dólares. Porque tem uma melhor recepção na Europa do que nos Estados Unidos? “Tenho mais leitores na Alemanha, França e Espanha porque são países aonde ainda interessa a leitura. Nos Estados Unidos é um deserto”. Não se refere aos autores, mas aos leitores que, segundo ele, não têm em conta nem sequer os maiores [escritores], como Philip Roth, John Updike ou Don DeLillo. “Não se engane, eles não vendem muito por lá. Há anos que os escritores não interessam à televisão e tão-pouco lhes fazem entrevistas nos jornais. Em todo o país sobram somente dois ou três suplementos literários”.»
A seguir, como não poderia faltar a um Auster, ultimamente, mais interventivo em termos políticos, vem a zurzidela em George W. Bush e a responsabilidade do estado em que as coisas estão, e da sua influência no espírito do tempo americano contemporâneo.

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Memória

Dizem que o passar do tempo apaga a má memória, apenas subjaz a boa saudade – que antinomia –, a boa memória da pessoa ausente.
Mas o que é isso da “boa memória”?
Toda a memória é má enquanto, no intrincado da nossa mente torturada pela morte a destempo, impera o sentimento de perda.
Não há sossego por um minuto que seja. E foram tantos, 3.153.600 contados por alto.
Não pode haver quietude enquanto o nó da saudade que nos sufoca não se desfizer em areia que se desloca na ampulheta da vida.
O meu tempo parou há seis anos. Vou vivendo aquele que os outros que de mim não desistiram me concedem.
Só vos posso agradecer e nada prometer, enquanto, com químicos ou sem eles, com reflexões ou sem elas, com conselhos ou sem eles, sentir que «nenhuma ausência é mais funda do que a tua» (sempre Sophia).

Para o T. (27/06/1975 – 30/10/2002), o teu eterno e cadavérico James Osterberg bem acompanhado, na cidade que galgámos sofregamente pela iminência do desfecho:


Do álbum Jazz A Saint-Germain (1998)
(Créditos – letra: Irving Kahal; música: Sammy Fain; 1938)

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Casanova explanado em Nabokov

Epígrafe:
«Não julgueis, para que não sejais julgados.»
Mateus, 7:1

E ao 20.º dia Casanova quebra o silêncio e diz: em boa verdade vos digo [estas são minhas, para efeitos bíblico-dramáticos] «Qualquer leitor atento de Pynchon reconhece aqui o intento autorial: a magnificação apofénica das semelhanças entre locais ou eventos distantes.»

Mas foi a apofenia da magnificação que travou pensamentos ociosos, que em Nabokov encontrariam a resposta, retirando-nos para sempre do jugo paralisante da obnoxiosidade literária:

«“Mania referencial”, chamara-lhe Herman Brink. Nestes casos, muito raros, o paciente imagina que tudo o que acontece em seu redor é uma referência velada à sua personalidade e existência. Exclui pessoas reais da conspiração porque se considera muito mais inteligente do que os outros homens. A natureza fenoménica faz-lhe sombra onde quer que vá. As nuvens no grande céu transmitem umas às outras, por meio de vagarosos sinais, informações incrivelmente minuciosas a seu respeito. Os seus mais íntimos pensamentos são discutidos ao anoitecer, num alfabeto manual, pelo esbracejar de negras árvores. Os seixos, as manchas, os salpicos de sol formam padrões que representam de uma maneira horrível mensagens que tem que interceptar. Tudo é uma cifra e de tudo ele é o tema.»
in Vladimir Nabokov, “Sinais e Símbolos”, Contos Completos II, (pág. 282)
[Lisboa: Teorema, Outubro de 2003, 351 pp.; tradução de Telma Costa; conto original escrito em inglês: “Signs and Symbols”, 1946 (pub. The New Yorker); colectânea: The Stories of Vladimir Nabokov, 1995, editada por Dmitri Nabokov.]

Depois de tudo o que se passou nos últimos cinco anos com as revelações de Dmitri sobre a desobediência à ordem dada pelo pai para destruição da obra em que trabalhava na Suíça na vizinhança da sua morte – que, todavia, vai ser publicada, como The Original of Laura –, muitos apofenevitch (patronímico) foram inoculados pela mão lúdico-manipuladora de Dmitri, ou a apofenia antropomorfizada.

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Fôlego

Foi a palavra que me surgiu de forma espontânea, tremulando com toda a sua carga polissémica, assim que abri a página em branco do processador de texto, à laia da libertação automática de impulsos de Breton, para escrever alguma coisa e tentar caracterizar a obra de ficção literária que acabara de desfrutar por completo havia pouco mais de vinte e quatros horas.

[Este texto permaneceu encerrado na pasta de arquivo “não publicado”, que guarda os inúmeros ficheiros reprimidos deste blogue, há quase uma semana; um terrível ataque de pudor sem origem e razão certas, levaram-me a este indescritível aferrolhamento; bom, angústia, talvez advinda de uma lesadíssima auto-estima, ultrapassada].

A obra. Trata-se de As Três Vidas, o último romance publicado pelo jovem escritor lisboeta João Tordo (n. 1975) – o seu terceiro, depois de O Livro dos Homens sem Luz (2004) e do fascinante Hotel Memória (2007).
Fôlego: desmedido, em termos literários, em inspiração; meticuloso, ritmos narrativos bem medidos, uma urdidura tecida em filigrana, extraordinária gestão de expectativas; exigência, sem intervalos e outros intoxicantes, de uma leitura atenta, de uma paz de espírito que nos retire o complexo de culpa do consumo de tempo originado por uma vontade voraginosa de o ler de uma só assentada.
Uma abertura suficientemente cativante, auxiliada por um frontispício denodadamente ilusório:

«Ainda hoje, sempre que o mundo se apresenta como um espectáculo enfadonho e miserável, sou incapaz de resistir à tentação de relembrar o tempo em que, por força da necessidade, fui obrigado a aprender a difícil arte do funambulismo.» (pág. 11)

O protagonista, narrador omnipresente de uma história pontualmente feliz, matizada de uma pungente e indelével inquietude, uma pátina de melancolia, vivida durante um quarto de século, é um banal jovem lisboeta nascido em 1960, que terminando o liceu no início da década de 1980, procura emprego, após um hiato estival de indolência, como meio de ajudar a mãe, mentalmente perturbada após a morte prematura e trágica do pai, e a irmã de dezoito anos. Encontra-o, num anúncio de jornal. Irá trabalhar na Quinta do Tempo, situada nas cercanias de Santiago do Cacém, onde o espera um jardineiro muito especial, Artur, e um patrão esquivo e enigmático, de seu nome António Augusto Millhouse Pascal.
O trabalho é suficientemente repetitivo e enfadonho, que um cheque chorudo no final do mês não dá azo à desistência; catalogar e indexar as fichas de uma série de clientes que frequentam a Quinta, desconhecendo-se o objecto e a missão dos serviços que lhes são prestados.
Intercalada com o entra e sai de pessoas misteriosas de todas as nacionalidades, que de certa forma parecem ter estado ligadas a um passado brutal, surge a história dos três netos de Millhouse Pascal que calcorreiam os jardins da casa aos fins-de-semana – estudam em Cascais durante a semana num colégio inglês – de onde se destaca a jovem Camila, que depois da centelha inicial, despertou um fogo impetuoso e inextinguível no coração do pobre narrador, a que se junta o estranho desaparecimento de Adriana, a filha do patrão, que, segundo a própria filha Camila, apesar da integral perda de contacto com a progenitora, se encontra em Nova Iorque a praticar funambulismo.
Está dado o mote para o desenvolvimento de uma narrativa que, com a seus momentos decisivos, fatalmente directores das vidas dos personagens e do próprio local de todos os mistérios no Alentejo, conduzem o leitor a um labirinto emblematicamente borgiano, tão bem utilizado por Auster nas suas narrativas do acaso, a que se junta o insólito arrevesado tipicamente kafkiano; a obstinação sem fim à vista.

Borges, um leitor atento e apreensivo de Kafka, referia-se-lhe como o escritor da postergação infinita – aludindo ao paradoxo de Zenão de “Aquiles e a Tartaruga”, da busca perpétua –, cuja presença o autor argentino identificava com maior acuidade em dois dos seus três (inacabados) romances, O Castelo (Das Schloss, 1925) e O Processo (Der Prozess, 1925), e em alguns dos seus contos, onde aquele destacava a narrativa curta “A construção da muralha da China” (Beim Bau der Chinesischen Mauer, pub. 1931) como o paradigma dessa postergação, de infinito múltiplo.
As Três Vidas, o último romance de João Tordo, tem, de certa forma, matizes kafkianos na estrita medida do qualificativo definido por Borges, implicando, para isso, que da leitura da obra se tivesse verificado o uso (mais ou menos consciente) das seguintes premissas: a subordinação e o infinito – que Borges afirmava serem obsessões do jovem Kafka, e que, de certa forma, influenciarão, definitivamente, a sua extensa obra, plena de circularidades e perpetuidades.
A subordinação concentrada no personagem aglutinador de toda a trama, o misterioso António Augusto Millhouse Pascal, leva o narrador a uma viagem detectivesca no espaço e no tempo, ou seja, servindo-se do cruzamento das duas dimensões para tentar entender o alvoroço da sua situação presente. Todavia, mesmo que surjam as respostas para as suas inquietações através do achamento de determinadas pontas soltas, a que o narrador atribui a autoria ao mero acaso, a insatisfação subsiste, o convencimento da insignificância da sua existência é o obstáculo para a obtenção de uma visão geral multifacetada, que lhe escorre por entre os dedos como água, sem hipótese de a deter.
Em João Tordo, ou na sua obra, que uma simples releitura de Hotel Memória pode confirmar, não há soluções finais, nem desenlaces; existe antes a aparência de um fim, como uma imagem para dúvida existencial, para o desassossego, para a contínua dilaceração da alma.

«Se eu fosse um homem diferente, com mais imaginação, talvez pudesse acreditar – e fazer-vos acreditar – que os mistérios que perpassaram esta narrativa irão, um dia, encontrar a sua resposta; estou convencido, contudo, de que muitas coisas permanecem eternamente veladas e, com o passar do tempo, aprendi a viver com esta resignação. Por vezes, claro, é impossível evitar os enigmas que me atormentam (…); e, ao desejar sarar as minhas feridas com a lógica absurda deste mundo que, a cada hora que passa, me parece mais distante, zombando dos espíritos que ousam desafiá-lo, compreendo a inutilidade desta empreitada.» (pág. 301)

E não é este o mistério da vida?

Que se me perdoe o ar de graça com a hipérbole paradoxal, As Três Vidas é uma obra de um sufocante fôlego literário.

Classificação: ***** (Muito Bom)

Referência bibliográfica:
João Tordo
, As Três Vidas. Matosinhos: QuidNovi, 1.ª edição, Setembro de 2008, 304 pp.

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

As Novidades

Vladimir NabokovSegundo Isabel Coutinho, regressada da Feira do Livro de Frankfurt, a Editorial Teorema comprou os direitos para publicação para Portugal do romance inédito de Vladimir Nabokov (1899-1977), The Original of Laura, que havia despoletado um aceso debate no mundo das letras, dadas as instruções específicas do autor russo em leito de morte na Suíça para que Véra (1902-1991), a sua mulher, destruísse o manuscrito. Véra morreu em 1991 e deixou a “batata quente” nas mãos do insuportavelmente agreste e evasivo filho de ambos, Dmitri (n. 1934), que andou a brincar durante os últimos anos ao “queimo/não queimo” com os pacientes editores, críticos e jornalistas literários, gerando um chorrilho de especulações quanto ao conteúdo do misterioso manuscrito, composto por 125 ficheiros de indexação – para quem leu Na Outra Margem da Memória (Speak, Memory; 1951, rev. 1967) e Opiniões Fortes (Strong Opinions, 1973), sabe que este era o método de composição utilizado por Nabokov nas suas obras. A conspiração dos letrados envolveu Petrarca, Ticiano, Giorgione, putativas traições passionais reveladas, e por aí fora. Se a especulação tem durado, certamente que o pobre Vladimir Vladimirovich não teria escapado aos ovnilogistas, à Cientologia e a Tom Cruise, e até às conversas privadas com o Altíssimo da emissária Alexandra Solnado.


Roberto BolañoTambém de forma misteriosa, surgiu mais um manuscrito do autor chileno Roberto Bolaño (1953-2003), intitulado de El Tercer Reich, eventualmente escrito antes de Os Detectives Selvagens (Los Detectives Salvajes, 1998), e que entra pelo mundo dos fanáticos alienados dos jogos de estratégia, em que o protagonista, inventor de um jogo de realidade virtual (jogado em tabuleiro) denominado por “O Terceiro Reich” e participante alemão num torneio mundial, se desloca à Costa Brava espanhola para umas férias com a sua namorada, cujo jogo assume o papel de encruzilhada no entretecer de uma teia onírica de proporções cataclísmicas para o jovem autor. Não consegui descortinar pelo texto de Isabel Coutinho se os direitos desta publicação haviam ou não sido adquiridos pelo editor Carlos Veiga Ferreira da Teorema – editora que já havia publicado de Bolaño Os Detectives Selvagens e Estrela Distante (Estrella distante, 1996). No entanto, num país que ainda tem por publicar o magistral 2666 (2004) – obra póstuma, composta por cinco livros, que Bolaño pretendia ver publicados separadamente, com uma periodicidade anual, para garantir uma fonte de sustento à sua família –, e que ainda não publicou a esmagadora maioria da sua obra, acho, no mínimo, extravagante (a tal singularidade lusa que não me canso de repisar) que se opte pela publicação do manuscrito emergido das trevas, e isto apesar da datação posterior de 2666. A ver vamos.


Paul AusterPhilip Roth
Para 2009, no mundos dos vivos e sem manuscritos secretos para combustão ou qualquer outro uso que se queira dar ao papel, regressam ao, ou melhor, não saem dele (do), mercado os incansáveis autores de origem judaica, nascidos em Newark, Paul Auster (n. 1947) e Philip Roth (n. 1933) – têm, nos últimos anos publicado uma obra de ficção por ano. Auster regressa com Invisible, obra garantida para Portugal pela Asa. Roth com The Humbling, romance garantido pela Dom Quixote.

domingo, 26 de outubro de 2008

De derrota em derrota

Ibson e Leandro Lima
Há argumentos para o descalabro: deixámos fugir Paulo Assunção pela cupidez de mais uns trocos (explicação: não queremos gananciosos no nosso plantel); Bosingwa foi para o Chelsea (explicação: não poderíamos cortar as pernas ao melhor lateral direito do mundo; entretanto entraram mais 24 milhões, para onde?) Quaresma portou-se mal e pressionou para a saída, fechámo-lo a sete chaves para que o cigano aprendesse, depois baixámos as calças fazendo substituir, por um arabesco retórico, os 40 milhões exigidos por 18 milhões e… o Pelé, nome de craque (explicação: quem está mal muda-se e até veio um Assunção rejuvenescido... acabou-se o desatino da contratação de todos os defesas esquerdos do mercado, agora temos trincos; a casa está protegida, depois do assalto às claras, trincos à porta).
Ao comando mantemos Jesualdo Ferreira (com a saída de Carlos Azenha, fomos buscar José Gomes; ficou a dupla que, há alguns anos, tão bom resultados deu ao Benfica…)
Com Jesualdo somos bicampeões (para o “tri” teríamos de acrescentar o casmurro e incómodo Adriaanse). Perdemos duas Taças de Portugal e duas Supertaças frente ao Sporting, mas vamos vencendo o Benfica…
Nos últimos dois anos, contratámos um grupo inteiro de uma escola de tango: Benítez, Mariano, Bolatti, Tomás Costa, Farías, que se juntam à dupla de contrariados e insatisfeitos, com o seus gordos vencimentos, Lucho e Licha. Fomos à Colômbia buscar o afamado Guarín, depois do desastre Rentería (de quem espero que, em partenariado com o Alan, fique por muitos e bons anos na cidade dos arcebispos). Roubámos o Rodríguez ao Benfica. Pedimos à Marvel o Hulk. Eclipsámos aquele de quem se dizia ser o melhor defesa central do futuro, Stepanov. Deixámos o desgraçado do Raul Meireles sozinho a meio-campo, a percorrer o terreno todo sob o peso das tatuagens.
Mas temos Jesualdo e o seu idiossincrático e hidiano simpático/abespinhado na presença de jornalistas e de adeptos insatisfeitos.
E repito-me, já foram as taças e as supertaças, e a honra e a glória com o Nacional em casa, com o Chelsea, Liverpool e o Arsenal fora… e, ontem, o Leixões… «foi horrível», disse. Continuará a ser terrível, digo eu.
Entretanto, lá em cima, reproduzidos em píxeis, figuram o melhor jogador do Brasileirão da última época, Ibson (ainda para mais, pela onomástica, um quase excelso dramaturgo, ou um homem que trata os dramas por tu), e a, até há bem pouco tempo, grande esperança do futebol brasileiro, Leandro Lima (um pouco confundido com a idade, é certo, mas seria, certamente, uma preciosa ajuda para um meio-campo inexistente, que serviria de tampão para uma defesa de 5.ª categoria) – e ainda falta dissertar um pouco sobre o que se passou com o Bruno Moraes...
Entretanto, Jesualdo vai descarregando a sua bílis sobre tudo e todos.
Sou sócio do meu clube há quase 33 anos. Já paguei uma enormidade em quotas, uma pequena fortuna em lugares anuais (que abandonei com Adriaanse), e alguma coisa em produtos oficiais com marca registada… não sou accionista, e recuso-me a sê-lo enquanto o controlo pertencer a uma trupe que faz do meu clube um entreposto de jogadores, uma plataforma giratória de jogadores da bola entre a América Latina e a Europa.

A mim Jesualdo não me dá, nem nunca me dará lições de portismo. Afortunadamente, nunca pertenci à tenebrosa e ignara gentinha que por aqui denominei de “massa assobiativa”. Exijo, por isso, respeito e consideração pelo meu sofrimento semanal de adepto fervoroso – é bem certo que atenuado com algumas infelicidades, de todo o género e feitio, que sobre mim se abateram há coisa de sete anos e que insistem na sua laboriosa mortificação da minha alma.

Exige-se responsabilização.

Quero uma explicação cabal para o afastamento daqueles dois que, propositadamente, coloquei a envergar camisolas com outras cores que não as azul e branca.

sábado, 25 de outubro de 2008

Solução nabokoviana

Se considerou como válidas as quatro últimas proposições que, em conjunto, deveriam fazer um bom leitor, então acertou.
Eram óbvias, apesar de, segundo o autor, a maioria dos alunos (ainda não diplomados) se haver inclinado para a identificação emocional (2), para a acção (4) e para a perspectiva socioeconómica ou histórica (3) – sobre esta última Nabokov repreende, com o seu habitual desdém, aqueles que buscam o conhecimento de um local, dos costumes ou de uma época através dos romances; referindo-se, por exemplo, às putativas descrições histórico-etnográficas da Inglaterra rural dos séculos XVIII e XIX nos romances de Jane Austen, quando a autora não saía de casa e apenas conhecia a sala de visitas de um Ministro da Igreja Anglicana. Um romance é um conto de fadas e não um tratado de História ou um compêndio de investigação histórica.

«(…) o bom leitor é aquele que possui imaginação, memória, um dicionário e algum sentido artístico – sentido esse que me proponho desenvolver em mim e nos outros sempre que tenha a oportunidade de o fazer.»
Vladimir Nabokov, Aulas de Literatura, pág. 27.
[Lisboa: Relógio D’Água, Fevereiro de 2004, 446 pp.; tradução de Salvato Telles de Menezes; obra original: Lectures on Literature, 1980.]

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Teste Nabokov

(em jeito de preâmbulo sobre algo que poderá surgir, como mini-dissertação, dentro de um texto de maior dimensão e como auxiliar das minhas divagações de comum leitor.)

Proponho um pequeno exercício engendrado por Nabokov, quando se deslocou a uma cidade universitária de província onde deu umas palestras, que, para além de ter sido um excelente professor de Literatura, reunia em sim os três requisitos da genialidade literária: um encantador (magia), um contador de histórias (história) e um professor (lição).

Seleccione quatro respostas para a questão de como deve ser um leitor para ser um bom leitor:

  1. O leitor deve pertencer a um clube de livros.
  2. O leitor deve identificar-se com o herói ou a heroína.
  3. O leitor deve concentrar-se no aspecto socioeconómico.
  4. O leitor deve preferir uma história com acção e diálogos a um (sic) que os não tenha.
  5. O leitor deve ter visto o livro em filme.
  6. O leitor deve ser um escritor debutante.
  7. O leitor deve possuir imaginação.
  8. O leitor deve possuir boa memória.
  9. O leitor deve ter um bom dicionário.
  10. O leitor deve possuir algum sentido artístico.

Fonte: óbvia e deliberadamente deixada em branco (tradução de Salvato Telles de Menezes).

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

A escolha dos livreiros

Por vezes no afã de criticar duramente as coisas que diante dos nossos olhos vão mal no nosso país, numa espécie de umbiguismo quase autista, esquecemo-nos de reparar naquilo que, potencialmente, será criticável noutros países, até nos geograficamente próximos, mesmo com níveis de desenvolvimento e de literacia superiores aos nossos.
Enquanto consultava a página da Internet da revista francesa Le Magazine Littéraire, saltou-me à vista, seguindo os meus instintos de listómano – e para além do apelativo dossier mensal, que desta feita versa sobre o marxismo e o inusitado ressurgimento comercial dos livros do barbudo alemão no mercado literário francês, provavelmente correlacionável com o ambiente económico-financeiro onde predomina um sentimento cataclísmico –, mas dizia, instigou-me uma lista de livros que será elaborada mensalmente, em colaboração com os responsáveis do sítio Le choix des libraires – os ideólogos da referida lista –, sobre as preferências dos livreiros no mercado editorial francês.
Na lista dos 20+ deste mês, um pouco chauvinista… ou melhor francesa – arrisco, porventura, são adjectivos intermutáveis –, para além de figurarem os nomes do inglês de Birmingham David Lodge, da irlandesa Nuala O’Faolain, da australiana Julia Leigh e do afegão Atiq Rahimi, com os seus mais recentes romances – ainda inéditos em Portugal –, todos os outros são franceses ou francófonos, não se incluindo, como é óbvio, o primeiro da lista – top of the list, king of the hill, a number one... perdoem-me a sinatrada – um dos melhores escritores britânicos da actualidade, Ian McEwan.
É verdade, McEwan surge no topo das preferências dos 113 livreiros franceses consultados, com o seu novo romance Sur la plage de Chesil, editado pela insigne Gallimard em meados de Setembro.
Só para recordar, o romance Na Praia de Chesil (On Chesil Beach, 2007), editado em Portugal pela Gradiva, teve, honra lhe seja feita, estreia mundial simultânea no Reino Unido e em Portugal, algures pelo mês de Abril do ano passado. A edição francesa demorou quase um ano e meio – toma lá esta! [as minhas desculpas, este blogue vai de mal a pior.]
Esquecendo todos os outros factores como o da primazia na edição para os autores de língua francesa ou o da francofilia cega, em conformidade com uma razoável anglofobia, por esta amostra a edição literária em Portugal recomenda-se e respira saúde…
Bom, mas não nos entusiasmemos…
Ainda na dita lista de preferências, figura na 18.ª posição o mais recente romance do escritor francês, natural de Le Mans, François Vallejo (n. 1960), L’Incendie du Chiado, história, como o título indica, tem por base o fatal dia 25 de Agosto de 1988 em Lisboa. Ainda assim, a obra não tem edição marcada em Portugal.

Trata-se, uma vez mais, da consagração do velho adágio (em versão pós-moderna): Quem com ferros mata, não atira pedras ao vizinho.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Terapia

«Ainda hoje não sei o que penso da literatura, não tenho opinião formada. Creio que serve o seu propósito de maneira diferente para pessoas diferentes. No meu caso, a literatura foi sempre um bálsamo, um plano de fuga, presente nas alturas de maior necessidade. Em última análise, seria ainda um instrumento para veicular a verdade, se nos encontrássemos perante a necessidade de o fazer e possuíssemos o talento necessário.»
João Tordo, As Três Vidas, pág. 244.
[Matosinhos: QuidNovi, 1.ª edição, Setembro de 2008, 304 pp.]

Um exercício de verdade: a fuga… maldita e cara fuga.

terça-feira, 21 de outubro de 2008

Sextante e Capote

Foi interessante a conversa mantida entre Paula Moura Pinheiro e os editores João Rodrigues (Sextante Editora) e Paulo Teixeira Pinto (Guimarães Editores) na 106.ª edição do programa Câmara Clara.
Como tudo se torna mais agradável quando se ouve falar de livros por pessoas que os conhecem e a eles dedicam a sua paixão, de forma independente aos impulsos normalizadores do mercado que busca na Literatura a reverberação da frugalidade e da leveza intelectual da vida quotidiana contemporânea.
João Rodrigues falou do eventual insucesso comercial do seu último lançamento: os Contos Completos de Truman Capote (1924-1984). Mas a edição desta obra, como a de outras largas centenas que ainda permanecem por publicar em Portugal, tem de ser feita para que, pelo menos, se consiga abalar esse tal impulso normalizador, cultor da mediocridade e do pensamento mínimo – e daí a tal necessidade de divulgação de um cânone literário, como num programa anterior referiu Francisco José Viegas. Falou-se da imperiosa necessidade de existir um projecto cultural inteligível materializado num catálogo coerente oferecido pelas pequenas editoras, sem isso corre-se o sério risco de se quebrar, de forma definitiva, o elo de confiança entre o leitor e o editor, sendo simultaneamente factor de diferenciação e de sobrevivência.
A propósito do livro como produto comercial, João Rodrigues citou uma frase curiosa, proferida por um conhecido editor num colóquio literário: «o editor não tem de encontrar livros que se vendam, mas sim vender os bons livros que encontra.»

Chegamos, assim, a Truman Capote numa colectânea de vinte contos de qualidade manifesta, com apresentação de Reynolds Price. A antologia foi originalmente editada pela Random House em 2004 e inclui todos os contos de A árvore da noite e outras histórias (A Tree of Night and Other Stories, 1949; em Portugal editada conjuntamente com a novela A Harpa de Ervas pela Relógio D’Água, com tradução de Paulo Faria), para além de “Mojave” incluído em duas obras, em Música para Camaleões (Music for Chameleons, 1980; obra esgotada há anos em Portugal) e como capítulo do romance inacabado, pseudo-proustiano, recentemente editado em Portugal pela Dom Quixote, Súplicas Atendidas (Answered Prayers, 1987). Os restantes contos foram publicados separadamente em livros ou revistas.
Eis o primeiro parágrafo (e pouco mais...) de um dos seus melhores contos, “Miriam” (1945), publicado na revista Mademoiselle, com o qual Capote venceu o prestigiadíssimo O. Henry Award pelo melhor conto de estreia em 1946 – conquistaria o primeiro prémio em 1948 com o conto publicado na revista The Atlantic MonthlyFechar uma última porta” (“Shut a Final Door”, 1947) e o terceiro prémio em 1951 com “Casa de Flores” (“The House of Flowers”, 1951) publicado na revista Mademoiselle:

«Há vários anos que Mrs. H. T. Miller vivia sozinha num apartamento confortável (duas divisões e kitchenette), num brownstone remodelado perto do East River. Era viúva: o seguro de vida de Mr. H. T. Miller permitira-lhe receber uma soma razoável. Os seus interesses eram limitados, não tinha amigos dignos desse nome, e, no que tocava a viagens, raramente ia mais longe do que a mercearia da esquina. As outras pessoas do prédio pareciam nunca reparar nela: as suas roupas eram banais, o cabelo de um tom cinzento-escuro, curto, ondulado sem grandes primores; não usava cosméticos, os seus traços eram simples e vulgares, e, no seu último aniversário, fizera sessenta e um anos. As suas actividades raramente eram espontâneas: mantinha as duas assoalhadas num brinquinho, fumava um cigarro uma vez por outra, preparava as suas próprias refeições e tratava do canário.
«Até que conheceu Miriam. (…)»
Truman Capote, “Miriam”, Contos Completos, pág. 61.
[Lisboa: Sextante, 1.ª edição, Setembro de 2008, 413 pp.; tradução de José Vieira de Lima; obra original: The Complete Stories of Truman Capote, 2004.]

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Kazuo regressa

Kazuo IshiguroO não prolífico escritor nipo-britânico Kazuo Ishiguro regressa ao mercado editorial com um inédito na sua bibliografia, um livro de contos – em 1981 publicou três contos em Introductions 7: Stories by New Writers.
Depois do extraordinário e avassalador Nunca Me Deixes (Never Let Me Go, 2005), e cumprindo de forma quase escrupulosa o seu tempo médio de publicação de obras de ficção de sua autoria (calculado em 4 anos, 7 meses e 6 dias), a
Faber and Faber (a sua editora de sempre) anunciou em circuito fechado o lançamento para Maio de 2009 de:
Nocturnes: Five Stories of Music and Nightfall, que na edição canadiana da Random House disporá de 224 páginas.

Todas as obras de ficção de Ishiguro foram publicadas em Portugal, apesar de metade delas se encontrarem esgotadas há anos:

  • As Colinas de Nagasáqui, romance editado pela Relógio D’Água em 1990 (A Pale View of Hills, 1982);
  • Um artista do mundo transitório, romance editado pela Livro Aberto em 1990 (An Artist of the Floating World, 1986) – ESGOTADO;
  • Os Despojos do Dia, romance editado pela Gradiva em 1991 (The Remains of the Day, 1989) – ESGOTADO;
  • Os Inconsolados, romance editado pela Gradiva em 1995 (The Unconsoled, 1995) – ESGOTADO;
  • Quando Éramos Órfãos, romance editado pela Gradiva em 2000 (When We Were Orphans, 2000);
  • Nunca Me Deixes, romance editado pela Gradiva em 2005 (Never Let Me Go, 2005).

domingo, 19 de outubro de 2008

Pela tradução…

…de uma das melhores escritoras americanas vivas, que permanece uma quase desconhecida neste pobre país de pseudoliteratos – pelo menos a maioria sabe que é casada com Paul Auster –, talvez ignorada por uma editora que alterou os seus princípios pela via das selváticas fusões.
Deixo aqui ficar uma citação de um dos melhores livros que li na minha vida (já de três dúzias…), em jeito de serviço público e contra a snobeira provinciana, tão portuguesinha, que por aí prospera do “eu não leio traduções” (será que leram Tchekhov, Gogol, Dostoievski em russo?):

«(…) para ele, as histórias eram como o sangue que corria ao longo de um corpo – caminhos de uma vida.»
Siri Hustvedt, Aquilo que Eu Amava, pág. 17.
[Porto: Asa, 1.ª edição, Outubro de 2005, 412 pp.; tradução de José Vieira de Lima; obra original: What I Loved, 2003.]

Animoso desânimo

«O meu sofrimento é horrível. Acima de tudo, o moral. Quando temos um carácter violento, íntegro, é terrível vermo-nos obrigados a engolir em silêncio todos os insultos e a remoer as nossas cóleras. Além do mais, estou só. Ninguém encontro, perto ou longe, que me dê coragem, que me anime.
«Mas olhem! No fundo, gosto mais que assim seja. Prefiro este isolamento, este abandono, às piedades que desgastam a energia e às lamentações que castram. Saber que alguém chorava a minha sorte acabaria por tirar-me a coragem, julgo eu; e estou grato por não andarem a fazê-lo todos esses que poderiam interessar-se por mim apenas com a sua ingratidão egoísta; estou-lhes grato por nunca terem feito brilhar à frente dos meus olhos esses fogos-fátuos da esperança mentirosa, que apenas faíscam para nos fazerem cair e desaparecer nos barrancos do abatimento.»
Georges Darien, Biribi, pág. 166.
[Lisboa: Assírio & Alvim, Julho de 2005, 278 pp.; tradução de Aníbal Fernandes; obra original: Biribi, 1890]

sábado, 18 de outubro de 2008

Per Petterson

Já está disponível em português o romance que sucedeu a O Mestre (The Master, 2004) de Colm Tóibín como vencedor do Dublin IMPAC Literary Award, até há bem pouco tempo o maior prémio pecuniário do mundo a galardoar uma obra de ficção.
Trata-se do romance Cavalos Roubados (Ut og stjæle hester, 2003; versão em língua inglesa: Out Stealing Horses, 2005) do escritor norueguês Per Petterson, nascido em Oslo em 1952 – até agora inédito em Portugal – que não só venceu a edição de 2007 do IMPAC, como também a edição de 2006 do Independent Foreign Fiction Prize – de recordar que José Eduardo Agualusa foi o vencedor de 2007 com o romance O Vendedor de Passados (2004), prémio que já contemplou escritores como Pamuk, Kundera, Saramago (com O Ano da Morte de Ricardo Reis em 1993), Sebald ou Javier Cercas.


«Princípio de Novembro. São nove horas. Os chapins embatem contra a janela. Por vezes voam atordoados depois do impacto, outras caem a debater-se sobre a neve recente até conseguirem voltar a levantar voo. Não sei o que quererão que eu possa ter. Olho pela janela para a floresta. Há uma luz avermelhada sobre as árvores junto ao lago. O vento começa a soprar. Consigo ver-lhe a forma sobre a água.»
Per Petterson, Cavalos Roubados, pág. 9.
[Cruz Quebrada: Casa das Letras, 1.ª edição, Outubro de 2008, 275 pp.; tradução de Maria João Freire de Andrade; obra original: Ut og stjæle hester, 2003.]

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Haverá alguém que entenda isto?

A Editorial Presença acabou de anunciar que já se encontra disponível no mercado a segunda obra da sua recentemente inaugurada colecção “Obras Literárias Escolhidas” – a estreia deu-se com o romance, esgotadíssimo no mercado nacional, Trópico de Câncer (Tropic of Cancer, 1934) de Henry Miller.
Ora, a tal segunda obra é o excepcional romance Os Anos (The Years, 1937), de Virginia Woolf – o seu penúltimo romance, e o último publicado antes da sua morte trágica no Rio Ouse em 1941. A edição da Presença conta com a tradução de Fernanda Pinto Rodrigues e estende-se por 376 páginas, com o preço de venda ao público de 20 euros.
O que não se consegue entender é a oportunidade de publicação desta obra, uma vez que no mercado nacional de livros o mesmo romance, editado pela Relógio D’Água, distribuído por 414 páginas, com uma boa tradução de Pedro Elston, encontra-se perfeitamente disponível. Não há livraria, de média ou grande dimensão, que não o disponha, inclusive, em escaparate, pelo preço do editor de 17 euros.

Mas, comparemos as versões através das frases de abertura:

A versão original da abertura:
«It was an uncertain spring. The weather, perpetually changing, sent clouds of blue and of purple flying over the land. In the country farmers, looking at the fields, were apprehensive; in London umbrellas were opened and then shut by people looking up at the sky.»

A versão de Pedro Elston (Relógio D'Água) da abertura:
«Estava uma Primavera incerta. O tempo, em permanente mudança, fazia voar sobre a terra nuvens de azul e violeta. No campo os lavradores ao olharem para as terras ficavam apreensivos; em Londres os guarda-chuvas abriam-se e fechavam-se nas mãos das pessoas que olhavam para o céu.»

A versão de Fernanda Pinto Rodrigues (Presença) da abertura:
«Era uma Primavera irregular. O tempo, em constante mudança, punha nuvens azuis e purpúreas a voar sobre a terra. No interior, os agricultores olhavam, apreensivos, para os campos; em Londres, os guarda-chuvas eram abertos e depois fechados por pessoas que olhavam para o céu.»
A quem serve esta duplicação de esforços? Será a primeira versão uma má tradução? E se esse for o caso, quem a classificou como tal? O público? A crítica? Uma qualquer reunião casual de editores sentenciadores?

Já no início do ano havia dado conta de um caso ainda mais paradigmático de desperdício de eucaliptos para a produção de pasta de papel: as versões disponíveis no mercado nacional da novela de Lev Tolstói A Morte de Ivan Ilitch. Ele há para todos os gostos, de Adolfo Casais Monteiro, de António Pescada, de Pedro Tamen, de João Maia, de Nina e Filipe Guerra, e por aí fora.

Não há critério razoável que me permita discernir pela bondade desta duplicação, condição que é agravada pela quantidade incomensurável de obras de autores consagrados, há muito pertencentes ao cânone literário universal, que nunca viram a luz do dia em língua portuguesa deste lado do Atlântico.
Bastar-me-ão dois singelos exemplos entre dezenas: a obra de Thomas Pynchon após o romance O Leilão do Lote 49 (The Crying of Lot 49, 1966) e obras como The Adventures of Augie March (1953), Humboldt's Gift (1975) ou The Dean's December (1982), entre outras, do inigualável Saul Bellow (Prémio Nobel da Literatura em 1976).

Nas mãos do leitor fica a decisão: comprar o livro Os Anos de Woolf por 17 ou por 20 euros? Relógio D’Água ou Presença? 414 ou 376 páginas? Pedro Elston ou Fernanda Pinto Rodrigues?

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Trapalhada Intolerável


Quando em 1984 surge a dupla Joel e Ethan Coen com o seu primeiro trabalho, um filme negro série B, Sangue por Sangue (Blood Simple), as portas da selectiva – particularidade que se rege por critérios que não interessa aqui e agora explorar – indústria de Hollywood foram-lhe franqueadas, por via da aclamação unânime gerada no circuito cinematográfico independente. Os Óscares, antecedidos, decerto, pela brisa marítima que perambula pela passadeira vermelha da emproada Cannes seria apenas uma questão de tempo.
E assim foi, de lá para cá, a chancela “Irmãos Coen” juntou-se ao exclusivíssimo conjunto de fazedores de cinema americano cuja crítica, e produtos derivados, trata com alguma complacência, nalgumas vezes merecida.
Na realidade, houve fortes razões para isso, na minha discutibilíssima opinião, Fargo (1996) e O Grande Lebowski (The Big Lebowski, 1998) por si só mereceriam o Olimpo e a chama eterna da memória cinematográfica. Para trás tinham ficado os aceitáveis Arizona Júnior (Raising Arizona, 1987), História de Gangsters (Miller's Crossing, 1990) e Barton Fink (1991), para além do anódino O Grande Salto (The Hudsucker Proxy, 1994).
Mas, 2000 foi a marca indelével para o início do desencanto, o ano em que surgiu o paupérrimo Irmão, Onde Estás? (O Brother, Where Art Thou?) com início do abuso da utilização da compassiva e celebrada estrela ascensional George Clooney e o recrutamento da irritante e histriónica Holly Hunter – aqueles que me conhecem, já sabem da minha qualificação apriorística de sofrível a qualquer película em que figure, mesmo que de forma fugaz, a enervante meia-leca georgiana; está acima da minha vontade, fazendo tinir as campainhas de alarme pela entrada na zona restrita da minha psique denominada por “ódios de estimação”.
Seguiu-se-lhe um trio indesculpável – onde O Barbeiro (The Man Who Wasn't There, 2001) se distingue dos demais por vestígios de alguma qualidade – que precedeu o euromilhões cinematográfico, em grande parte proporcionado pelo brilhante enredo de um dos melhores escritores norte-americanos da actualidade, Cormac McCarthy.
O livro de McCarthy, como por aqui fui referindo amiúde, é uma pequena obra-prima, e exigiria cautelas na sua adaptação cinematográfica. Todavia, os manos Coen conseguiram-no, apesar de, pelo caminho, se haver perdido alguma de massa encefálica (que até pode ser literal) do cérebro literário do romance, aparando-lhe alguma da frondosidade moral elucubrada por McCarthy, sem contudo danificar a raiz – mas esses são os tais graus de liberdade que deverá gozar a adaptação de uma obra literária consagrada ao cinema, sob pena da textualidade arruinar as necessárias ductilidade e comunicabilidade entre artes.
Este País Não É para Velhos (No Country for Old Men, 2007) vence 4 Óscares (incluindo o de Melhor Filme), 3 BAFTA e 2 Globos de Ouro, para além de mais umas oito dezenas de prémios e galardões cinematográficos – apenas falhou, entre os grandes, a Palma de Ouro de Cannes, para a qual estava também nomeado.
Os Coen rejubilam, recolhem os louros e prosseguem na tarefa de inscrição de títulos nas suas ainda não muito extensas filmografias.

Menos de um ano depois da estreia comercial do filme de todos os sucessos, os manos voltam a atacar, regressando aos domínios da comédia, com o filme Destruir Depois de Ler (Burn After Reading, 2008) e com um elenco de luxo – expediente muito em voga, que o diga Soderbergh, talvez para disfarçar algum sentido desconforto artístico perante a obra forjada: John Malkovich, Frances McDormand, Clooney, Brad Pitt e Tilda Swinton – esta última acabadinha de ganhar, desmerecidamente, o Óscar para Melhor Actriz Secundária pelo seu banalíssimo papel em Michael Clayton (2007) de Tony Gilroy.
Destruir Depois de Ler é tipicamente um filme produto de dois fenómenos que costumam ocorrer quase em simultâneo em Hollywood após um grande sucesso: uma clamorosa ressaca vitoriosa e uma desmesurada insuflação do ego. Regra que se confirma não só com a realização mas com este desastroso regresso dos irmãos Coen ao argumento original: uma completa nulidade, confuso e desgarrado. Este País Não É para Velhos foi o livre-trânsito para este desastre, para esta imbecilidade fílmica, e estou certo de que a dupla se deve ter apercebido da manifestação de alguns sintomas eminentemente suicidários por negligência e de puro menosprezo por aqueles que se interessam pela manifestações artísticas da 7.ª arte. Nem se trata sequer de um exercício para invocar algum experimentalismo cénico, e com isso obter alguma condescendência. Já foi feito, e este é um acto falhado.
Nas interpretações, Brad Pitt está magnifico na personificação do típico bronco dos ginásios que inunda as nossas sociedades cultoras do físico a qualquer preço – consegue enroupar-se de todos os tiques do típico troll urbano que enxameia aqueles espaços bafientos com o seu adocicado perfume sudorífero. McDormand não sabe interpretar mal. Malkovich é prejudicado por um personagem oco num enredo sem nexo, fazendo com que o simples acto de assistir à sua performance se torne, de certa forma, num exercício confrangedor e masoquista, principalmente quando se é um admirador confesso do actor. Swinton está bem, e não mais do que isso, num papel que condiz com a sua cara de falsa pudica. Clooney está igual a si próprio, um pateta consumado.
O filme é uma sucessão de gags, quase todos sem o mínimo vestígio de graça e que jamais se unem num todo harmonioso e consistente. É um delírio fílmico arrevesado que nada tem de artístico no sentido lynchiano do termo, ou neste caso, pela índole que se lhe quis atribuir, no sentido gilliamiano de cinema.
Destruir Depois de Ler é um descarado assalto à mão armada para os admiradores do dueto fraterno e um roubo por esticão para todos aqueles que o meteram nos seus frágeis corações depois do seu último sucesso. E até me dou ao luxo de prescindir das metáforas anteriores, verbalizando alguma da minha pretendida violência classificativa: é um filme intelectual e literalmente desonesto.

Atrevo-me a finalizar com uma das frases do argumento, proferida por Chad Feldheimer (Pitt), que, pela pertinência, poderá ter servido de mote na concepção deste subproduto cinematográfico:

«As soon as you give us the money, dickwad!»

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Booker Prize 2008 – Vencedor

Eis o romance vencedor do The Man Booker Prize for Fiction 2008:


Aravind Adiga – The White Tiger (Atlantic)

Adiga nasceu na cidade de Madrasta (actualmente Chennai) situada no Sul da Índia, a 23 de Outubro de 1974. É jornalista e colunista de publicações como o Financial Times ou o Independent. Actualmente, vive em Mumbai, antiga Bombaim. The White Tiger é o seu primeiro romance.

As palavras de Michael Portillo, presidente do júri encarregado de atribuir o prémio deste ano:
«Este romance assume a tarefa extraordinariamente difícil de conquistar e manter a simpatia do leitor por um vilão consumado. O livro ganha ao conseguir lidar com graves questões sociais e as grandes transformações mundiais através de um humor espantoso.»

Notas:

  • Adiga junta-se ao então dueto formado pela compatriota Arundhati Roy com a obra, agradável e lacrimejante, O Deus das Pequenas Coisas (The God of Small Things, 1997) e pelo australiano vagabundo, quase eclipsado – obsceno mas limpo – DBC Pierre com o magnífico e hilariante romance Vernon Little – O Bode Expiatório (Vernon God Little, 2003), por ter vencido o Booker com o primeiro romance da carreira.
  • O que dirá James Wood – se a isso for chamado – por mais este prémio que, certamente, estará na linha do, apelidado por si, realismo histérico? Cujos fiéis representantes, ainda segundo o crítico, são Zadie Smith e Salman Rushdie.
  • (facto insólito) Este ano, nenhuma das obras finalistas foi ainda editada em Portugal. Aguarda-se, então, por sensibilidade e bom senso.

terça-feira, 14 de outubro de 2008

Sult (parte II)

(Nota: a dita "parte I", de pendor ecomiástico, pode ler-se aqui.)

«Era a época em que eu vagueava faminto por Kristiania, essa cidade curiosa donde ninguém parte sem levar consigo uma marca indelével...»
Knut Hamsun, Fome, pág. 23

[Lisboa: Cavalo de Ferro, 1.ª edição, Outubro de 2008, 254 pp.; tradução de Liliete Martins; obra original: Sult, 1890.]

Os 20 que são 19…

Foi ontem. A segunda segunda-feira do mês (a 2.ª 2.ª-Feira), neste caso de Outubro, que não quer significar qualquer alinhamento astral com implicações impiedosas sobre o destino humano, porque as há doze vezes ao ano, se exceptuarmos o calendário Maya e quejandos, mas trata-se, isso sim, de mais uma oportunidade para beneficiar da excelente promoção concedida aos utentes do cartão de leitor pela rede de lojas Bertrand no país.
Para um bibliómano é difícil resistir-lhe. Ainda não inventaram a metadona de substituição, que apenas poderia passar por limites de cartão de crédito mais do que excedidos e os impertinentes telefonemas diários dos sisudos gestores de conta (quando é para pagar ou repor, é o momento de descanso dos seus repuxados músculos maxilofaciais de tanto lambebotismo para atingir os objectivos mensais).
Mas como referia, à 2.ª 2.ª-feira anuncia-se um pseudodesconto (adianto-me com o prefixo que lhe dá falsidade) de 20% sobre o preço de capa do livro, repartido da seguinte forma:

  • 10% de desconto imediato no momento da compra;


  • 10% na acumulação de pontos na conta do cartão “Leitor Bertrand” (onde cada euro despendido corresponde a 15 pontos, e a cada 1500 pontos acumulados é emitido um vale de desconto de 10 euros a utilizar na próxima compra em qualquer loja Bertrand do país).

Mais uma pilha de livros e, desta feita, um pouco mais de atenção. A vida não está fácil. De hora a hora somos bombardeados com notícias da derrocada do sistema financeiro mundial. Visões apocalípticas de fazer corar João, o Evangelista. Sérias predições, para uns, uma convicção firmada, para outros, sobre o fim de uma civilização a pedir meças a um universo ficcional huxliano, com laivos de uma veia pirómana de feição bradburiana, e de uma luta desesperada pela sobrevivência, de proporções cataclísmicas, tipicamente wellesiana.
(Prioridade nacional: há que garantir os depósitos da imensa… minoria que conseguiu aforrar – curioso que, por estas bandas, o verbo se transmute numa antonímia insuperável: torrar, derreter, desfazer-se. Há que injectar dinheiro no sistema bancário de forma discricionária e, assim, garantir a manutenção do sistema de compensação aos executivos que, por uma engenharia financeira, estatutária e de aquisição de almas auditoras, aliada a uma pequena desatenção dos reguladores dos mercados, conseguem, anual ou trimestralmente, escapar ao controlo dos accionistas.)

Dada a evidente excitação que o assunto suscitou na minha aquecida alma, o parágrafo anterior surge delimitado por parêntesis, ou seja, é de todo dispensável – prática que poderia ser, perfeitamente, extensível ao parágrafo anterior… ou quiçá ao próprio blogue dada a irrelevância de conteúdo, que se agiganta de dia para dia.

Ponto de ordem: dizia eu, “a vida está cara”. E se me prometem 20% de desconto sobre a aquisição de qualquer bem ou serviço, eu quero, com toda a força que a lei e a ética comercial me concedem, aproveitar e beneficiar desse quinto de generosidade provindo do fornecedor do bem ou do prestador do serviço. Mas há quintos e quintos, até o dos infernos, eis a história do João, (que não tem que ver com o de cima, o tal das trombetas), este é garagista:
O João, munido do seu cartão de leitor e aproveitando a hora de intervalo para o almoço, deslocou-se, de desperdício no bolso, a uma loja Bertrand no dia 13 de Outubro de 2008, pelas 13 horas e 5 minutos. Decorridos 22 minutos e 37 segundos apresentou-se à caixa registadora – e, acrescente-se, após haver constatado que a última edição da revista Ler, que por coincidência pertence ao mesmo grupo proprietário da livraria, ainda não estava disponível, apesar de o tal número ter saído para as bancas na passada sexta-feira – com uma pilha de livros que perfazia o total de 50 euros (três mulheres de fibra – All-Bran –, um xaroposo criativo e uma ave rara: Modignani, MRP®, Allende, Sparks e o consultório, estilo Bruxo de Viena, condensado em livro, sem calva e bigode, do Dr. Phil; ainda pensou no Arquipélago da Insónia mas já havia lido, pelo menos, um dos livros do autor pós Exortação aos Crocodilos, fac-símiles do que se lhe seguiu, e fez lembrar-lhe o recentemente desaparecido Aleksandr e a tortura e essas coisas sem sentido – cabeça em ebulição esta, a do nosso rapaz).

No documento de liquidação/pagamento estavam inscritas as seguintes parcelas:

  • V. Total – 50,00 € (valor bruto)


  • Desconto – 5,00 €


  • A Pagar – 45,00 € (valor líquido)


  • Pontos obtidos com a venda: 675 (ou seja, 45 € x 15 pts./€)

Ora, como 1500 pontos correspondem a 10 euros, então 675 pontos correspondem a 4,50 euros.
Em resumo, o desconto total saldou-se por 9,50 euros (5 € + 4,50 €) que corresponde a 19% do valor bruto da compra, 50 euros.

Na prática a Bertrand aplica uma fórmula de desconto de “10% + 10%” na campanha mensal das “segundas segundas-feiras” e nunca os publicitados “20%”. Em boa verdade vos digo, nem sempre “10+10” é igual a “20”, e bastaria apenas um pouco de boa vontade: retiraria da lama essa ciência exacta proscrita que se chama Matemática e limpava, ai se não limpava!, a honra esmaecida da casa germanico-hispano-lusa.

Pobre João. Enervado com a argumentação… meramente interior – uma vez que é rapaz tímido e jamais levantaria a voz para exigir os seus direitos sem um austero e reivindicativo agente sindical por perto –, ainda tropeça nas placas de sensores de alarme à porta da livraria e estraçalha, por um qualquer gesto amaneirado, exagerado e insólito, o último romance do prolífico Sparks, Um Homem com Sorte… Ah, tudo se resolveria não fosse a seguradora ter falido… Maldito mercado!

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

As Bruxas Enviuvaram

O provocante, arrebatador e célebre trio formado por Alexandra, Jane e Sukie – meninas agora enviuvadas por um defeito da sua malignidade –, regressou ao sortilégio histérico pela pena (por vezes misógina, daí o histerismo aqui explícito, e por lá subliminar) de John Updike, que há vinte e quatro anos publicou As Bruxas de Eastwick (The Witches of Eastwick, 1984) – obra editada em Portugal em 1987 pela Gradiva, que, de forma incompreensível e sobremaneira irritante, se encontra esgotada há anos no nosso mercadozinho editorial.

A obra será lançada na próxima semana nos Estados Unidos, e se provas faltassem quanto à comunicabilidade intercultural e às versatilidade e desinsularidade literárias de Updike, atente-se na sua vasta obra, que vai desde a crónica da conturbada vida familiar americana – recordemo-nos, por exemplo, da tetralogia do Coelho e do romance provocador e, à época, fracturante Casais Trocados (Couples, 1968) – aos meandros da política e dos meios artístico e literário, até aos grandes temas que preocupam ou preocuparam a população americana, como o terrorismo, o fundamentalismo assassino das seitas religiosas davidianas, e até, diga-se para que honra lhe seja feita, da condição feminina, chegando ao puro domínio da fábula e da fantasia onde As Bruxas de Eastwick e o extraordinário e inesquecível romance Brasil (Brazil, 1994) são o seu expoente máximo.

Quem me visita e tem paciência para ler os meus textos, já o sabe: sou um admirador da ficção norte-americana contemporânea e, em particular, da de John Updike. De todas as suas obras por onde passaram os meus olhos de leitor atento – e, acreditem, trata-se já de uma parte substancial do seu catálogo romanesco que foi publicado em português –, apenas Procurai a Minha Face (Seek My Face, 2002) e O Terrorista (The Terrorist, 2006) abalaram as já firmes expectativas de um updikiano convicto. Ambas, e refiro-o com alguma frustração (felizmente curável), ficaram abaixo do nível de perfeição e de rigor estético que o autor da Pensilvânia nos habituou, e foi apenas isso, não se devendo a qualquer irrupção varicosa de má qualidade literária.
Por publicar, em Portugal, está a totalidade da sua poesia, dos seus contos e, mais importante e simultaneamente frustrante, todos os seus ensaios sobre arte e literatura, e principalmente o seu aclamado livro de memórias, publicado em 1989, Self-Consciousness – situação que, no meu caso, poderia ser de fácil resolução, não fora a minha teimosia de não ler em inglês nas horas de lazer pelo seu forte odor a trabalho e pelos sinais mentais de alerta de vivificação da desejadamente adormecida rotina quotidiana.

Sem mais delongas, aqui fica o início traduzido – pois claro – do romance que Updike publicou aos 76 anos:

«O conventículo reconstituído

Aqueles que entre nós estão a par da sua história sórdida e escandalosa não ficarão surpreendidos se ouvirem, mediante os rumores provenientes dos mais diversos locais onde as feiticeiras assentaram arraiais depois de escaparem da nossa venerável vila de Eastwick, Rhode Island, que os maridos que as três infames mulheres, através das suas artes negras, forjaram para elas próprias, não se revelaram duradouros. Métodos ruins fabricam produtos ruinosos. Satanás, claro, falsifica a Criação, mas através de deuses inferiores.
»
John Updike, The Widows of Eastwick (2008) [tradução: AMC]

domingo, 12 de outubro de 2008

Temível Aurora

«Quando acordei, vi a luz do amanhecer através dos buracos da persiana. Vinha tão de dentro da noite que tive uma espécie de vómito de mim mesmo, o espanto de encarar o novo dia com a mesma apresentação, a sua indiferença mecânica de sempre: consciência, sensação de luz, abrir os olhos, o nascer do dia.
«Nesse instante, medi o horror que tanto maravilha e seduz as religiões com a omnisciência do semi-adormecido: a perfeição eterna do cosmos, a revolução interminável do planeta sobre o seu eixo. Náusea, sensação insuportável de coacção. Estou obrigado a suportar que o sol apareça todos os dias. É monstruoso. É desumano.»
Julio Cortázar, O jogo do mundo (Rayuela), pág. 423.
[Lisboa: Cavalo de Ferro, 1.ª edição, Abril de 2008, 631 pp.; tradução de Alberto Simões; obra original: Rayuela, 1963]

Perpetuidade

«Quando tiveres a minha idade, dar-te-ás conta disso. Na minha idade, se levares às costas todas as tristezas que viste na vida, não te conseguirás levantar da cama todas as manhãs.»
John Updike, Coelho Enriquece, pág. 404.
[Porto: Civilização, Setembro de 2008, 498 pp.; tradução de Carmo Romão; obra original: Rabbit is Rich, 1981]

Salto no escuro

«Às vezes dá-se o caso de não se conhecer aquilo que obscuramente se deseja, mas sabe-se que se vai falhar o alvo; e então, deixa-se a vida escoar-se como num quarto trancado onde impera o medo.»
Robert Musil, “A tentação de Verónica, a serena”, in op. cit., pág. 198.

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Rumo

«Há uma fase na vida em que esta abranda de forma nítida, como se hesitasse entre continuar ou alterar o seu rumo. É possível que nesta fase seja mais fácil o azar vir ao nosso encontro.»
Robert Musil, “Grigia”, in A portuguesa e outras novelas, pág. 11.

[Lisboa: Dom Quixote, 1.ª edição, Setembro de 2008, 230 pp. (novela: pp. 11-40); tradução de Maria Antónia Amarante; obra original (reunião de duas obras): Zwei Erzählungen, 1911; Drei Frauen, 1924.]

O abrandamento é o próprio prenúncio, seja ele imposto ou auto-induzido, de que o azar virá, travestido de mudança, ataviado de promessas, mesmo que exista a sensação de continuidade do rumo, obstinada e integramente, traçado num passado mais ou menos recente.
Há um desvio, na maioria das vezes imperceptível numa análise ex post facto, e indetectável no aqui e agora. Não, nunca mais. Já não iremos calcorrear as mesmas pedras ou saltar os mesmos obstáculos.
Porém, o azar é apenas desresponsabilização: se melancolia, é um vício que se vai alimentando de autojustificações até à inacção pulverizadora daqueles que nos amam; se infelicidade, é um grito surdo de desespero, uma súplica dilacerante para o alijamento final para não os magoar.

Caeteris paribus: a melancolia é uma variante do egoísmo que se desenvolve até ao estádio máximo da ruína ou da destruição, caminha por fim como uma alma penada de eremitério em eremitério, cristalizada no tempo; a infelicidade, ao invés, é a própria ruína, procura rapidamente um acto de altruísmo, sem qualquer tipo de dissimulação, para que o tempo apague os despojos dessa destruição.

É fácil ser-se feliz na melancolia, mas é um contra-senso ser-se melancólico na infelicidade.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

O Nobel ficou em França

Depois da expectativa, quiçá deliberadamente criada pelo inefável Secretário permanente da Academia Sueca, eis o Prémio Nobel da Literatura de 2008:

J.M.G. Le Clézio


Jean-Marie Gustave Le Clézio
(n. 1940, Nice, França, a 13 de Abril)


«Autor de novas paragens, aventura poética e êxtase sensual, explorador de uma humanidade mais além e subjacente à civilização dominante.» [tradução: AMC]


Obras de J.M.G. Le Clézio editadas em Portugal:

  • O Processo de Adão Pollo (Le Procès-verbal, 1963), obra editada pela Europa-América - 1.ª obra do autor, vencedora do prestigiado prémio literário francês Renaudot;
  • A febre (La fièvre, 1965), obra editada pela Ulisseia – contos e narrativas;
  • Índio branco (Haï, 1971), obra editada pela Fenda;
  • Deserto (Désert, 1980), obra editada pela Dom Quixote;
  • O caçador de tesouros (Le chercheur d'or, 1985), obra editada pela Assírio & Alvim;
  • Estrela errante (Étoile errante, 1992), obra editada pela Dom Quixote;
  • Diego e Frida (Diego et Frida, 1995), obra editada pela Relógio D'Água – não-ficção, biografia sobre a relação amorosa tempestuosa da pintora mexicana Frida Kahlo e o muralista mexicano Diego Rivera.

Nota: O Eduardo acertou em cheio e desperdiçou o "14/1" da casa de apostas britânica Ladbrokes (o Da Literatura contém uma mini-biografia).

O voto dos leitores


A vencer um norte-americano – resultado que me parece de todo improvável dadas as declarações de Engdahl na semana passada, e daí ter colocado este desafio, em forma de inquérito em linha, para eleger um escritor norte-americano (insular, não participante no grande diálogo da literatura mundial, em suma, um gentio provinciano) – a escassíssima comunidade de leitores deste blogue, votou:

  • Philip Roth (n. 1933), com 30% dos votos;
  • seguido do esquivo J.D. Salinger (n. 1919) e do literariamente brutal Cormac McCarthy (n. 1933), cada um obteve 15% das preferências.

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

O Nascimento de uma Nação [pub]

O poeta, ensaísta e professor universitário Mário Avelar apresentará o seu mais recente livro, com o título de inspiração griffitiana, O Nascimento de uma Nação – Nas origens da Literatura Americana.
(Nada mais a propósito quando se discute a valia da literatura norte-americana em resultado das palavras descabeladas do secretário permanente da Academia Sueca à Associated Press na semana passada.)
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A Fnac, as Edições Cosmos e o autor Mário Avelar, têm o prazer de o convidar para o lançamento do livro O Nascimento de uma Nação – Nas origens da Literatura Americana.

Quinta-feira, 16 de Outubro de 2008, pelas 18:30, na Fnac do Centro Comercial Vasco da Gama em Lisboa.

terça-feira, 7 de outubro de 2008

Depois de Revel, um remate com Gombrowicz

Witold GombrowiczFicaram coisas por dizer… ou melhor, por citar dos assomos de perplexidade de Jean-François Revel perante a sobranceria e a obstinação primária da elite intelectual europeia, em particular da francesa, perante a criação artística e filosófica norte-americana, infectada por um dogmatismo torpe que rejeita liminarmente qualquer tipo de manifestação política, económica, social, cultural e tecnológica provinda do outro lado do Atlântico.
Talvez insularidade concorde com globalização, ou imperialismo com ignorância (ou primitivismo). Possivelmente, noções como liberdade e democracia, pluralidade e livre iniciativa, se tenham transformado em conceitos tão desfasados que, à luz do espírito do europeu moderno e progressista, o caminho da libertação se dê pela opressão, aproximando, em síntese, o extremista racista e xenófobo do revolucionário antiglobalização. Perdeu-se a referência social por uma heteróclita fusão de ideologias. E Sempre o 11 de Setembro, para o melhor e para o pior, e o caso paradigmático daquilo que referi no parágrafo anterior, contado (ainda) por Revel à laia de demonstração: os festejos com champanhe de Le Pen e do seu inominável séquito na sede da Frente Nacional em Paris enquanto assistiam ao desmoronamento em directo das Torres Gémeas em Nova Iorque, e os apupos ao presidente da confederação sindical francesa CGT (equivalente à nossa CGTP-IN) quando, em 16 de Setembro de 2001, pretendia fazer três minutos de silêncio em memória das vítimas dos atentados ao WTC e ao Pentágono.

Termino com Gombrowicz [na imagem], postando um excerto de um deslumbrante prefácio ao seu conto «Filifor revestido de criança» [tradução livre], que dedico à Academia Sueca e, de forma especial e terna, ao seu secretário permanente Horace Engdahl:

«Meus senhores, existem sobre a terra sociedades mais ou menos ridículas, mais ou menos desonrosas, vergonhosas e humilhantes, e desta forma a quantidade de estupidez é igualmente variável. Assim, por exemplo, o meio dos cabeleireiros parece-me, à primeira vista, mais sujeito à imbecilidade que o meio dos sapateiros. Mas o que se passa no meio artístico do orbe supera todas as marcas da estupidez e da infâmia, a tal ponto que um homem normalmente decente e equilibrado não pode senão baixar o seu rosto inundado pelo suor da vergonha, perante essas orgias infantis e pretensiosas. Oh, esses cantos sublimes que ninguém escuta! Oh, as conversas lúcidas dos sabedores e o frenesim dos concertos e nas sessões de leitura de poesia, oh, aquelas iniciações íntimas e aquelas valorizações, discussões, e oh, os rostos dessas mesmas pessoas quando declamam ou escutam, celebrando entre si o santo mistério do belo! Por que dolorosa antinomia tudo o que vocês fazem ou dizem se converte, sob estas circunstâncias, em fantochada e vergonha? Se, com o passar dos séculos, uma sociedade cai em tais convulsões de imbecilidade, então, quase com toda a certeza, pode-se formular o juízo de que as suas ideias não correspondem à realidade, que, simplesmente, vive de ideias falsas. Já que, sem dúvida alguma, as vossas concepções artísticas constituem o cúmulo da ingenuidade conceptualista; e se querem saber como e em que sentido teríamos de as transformar, e qual deveria ser a concepção justa e não ridícula, eu poder-vos-ei dizê-lo de seguida, mas têm de apurar o ouvido.
«Na realidade, o que se imagina aquele que, nos nossos tempos, sente a vocação da pena, do pincel ou do clarinete? Ele, antes de tudo, quer ser artista. Quer criar arte. Anseia, então, através da beleza, da bondade e da verdade satisfazer-se a si mesmo e aos seus concidadãos, propõe-se a ser Vate, Bardo, Sacerdote e obsequiar com o seu ser os restantes, imolar-se no altar do sublime, procurando, em prol da humanidade, esse maná celestial tão desejado. Ao mesmo tempo, quer dedicar o seu Talento ao serviço da ideia e, talvez, conduzir a humanidade ou a nação a um melhor futuro. Que fins tão nobres! Que magníficos desígnios! Acaso não eram esses os fins e os desígnios de Shakespeare, Goethe, Beethoven ou Chopin? Mas aqui reside o problema, na realidade, vocês não são Chopins, nem Shakespeares, senão, no melhor dos casos, semi-Shakespeares e um quarto de Chopin (oh, as malditas partes de novo!) e, por conseguinte, essa atitude só põe a nu a vossa triste inferioridade e insuficiência, e iria parecer como se pretendessem, a toda a força, saltar para o pedestal em torpes saltos, pondo em perigo as mais sensíveis e preciosas partes do vosso corpo.»
Witold Gombrowicz, Ferdydurke, pp. 73-74
(Buenos Aires: Sudamericana, segunda edición, enero de 1983, 268 pp; tradução do polaco para castelhano: Witold Gombrowicz; obra original: Ferdydurke, 1937.)

[Nota: traduzido por AMC a partir da versão espanhola (Argentina), por sua vez traduzida do polaco pelo próprio autor em 1964.]

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Revel – II

E prossegue Revel com as suas perplexidades na obra já citada no texto anterior, num capítulo a que chamou «A pior sociedade que jamais existiu», recheado de algumas proposições injectadas de forma reiterada na opinião pública, sem qualquer tipo de contrastação, apenas sancionadas pelo tradicional ufanismo e verborreia narcísica de um grupelho de intelectuais que, engenhosamente, esconde o seu sectarismo primário e faz uso recorrente da falácia através do seu instrumento mais popular: o argumentum ad nauseam, por vezes mais bem descodificado como “a mentira nazi”.

«Replicando a um artigo de Jacques Julliard publicado no Libération, um certo Jean-Marc Adolphe, critica-o, no mesmo jornal por considerar a América uma democracia, quando obviamente não o é, uma vez que “reserva para os mais ricos o direito de cuidar da saúde e de envelhecer com dignidade”.
[…]
«Dando preferência aos termos vagos, o senhor Adolphe afirma que a América não pode ser uma democracia porque, segundo ele, é um país “onde tudo se compra e tudo se vende”. Mas que generalização mais audaciosa! Também gostaríamos de saber se a América é um país onde o poder dos juízes é excessivo, como tantas vezes se afirma, ou se não se trata mesmo de um Estado de direito. O direito existe, prossegue o senhor Adolphe, mas é o “direito dos produtores, que prevalece sobre o dos autores”. Que quererá isto dizer? Que nos Estados Unidos não há contratos editoriais? Que a propriedade literária e artística não está protegida? Que a história da literatura americana, tal como a do cinema, é um deserto, vazio de grandes criadores, de talentos originais, porque estes foram constantemente, reprimidos pelos “produtores”?
«As letras europeias não são as únicas a desprezar a literatura americana, à qual, no entanto, devem não só tantos temas inovadores como técnicas narrativas revolucionárias. O diário Asahi Shimbun, que realizou um inquérito de opinião entre escritores e filósofos japoneses, na sequência do 11 de Setembro, dá-nos conta não só de tendências políticas mais próximas dos terroristas islâmicos do que das suas vitimas, como também de críticas literárias eivadas de condescendência e de um sentimento de superioridade. O filósofo Yujiro Nakamura, por exemplo, escreve: “A cultura americana sempre dignificou a saúde física e mental e sempre desdenhou o que se dissimula na sombra da natureza humana: as fraquezas e as carências. [...] Quando os seres são fracos, ela ignora-os, pois trata-se de uma dimensão humana que não se pode colocar ao serviço da produtividade e da eficiência. Semelhante civilização veicula uma visão unidimensional do mundo que suprime a sensibilidade para com o abismo de sombras que os outros homens trazem consigo.”
É evidente que o senhor Nakamura nunca leu Melville, nem Poe, nem Hawthorne, nem Henry James, nem Faulkner, nem Tennessee Williams, nem
The Crack up de Scott Fitzgerald, para citar apenas alguns autores.
[…]
«Além de tudo o mais, os escritores americanos são muito mais críticos em relação à sua própria sociedade do que proclamam os papagaios do antiamericanismo, sejam eles japoneses, franceses, ou quaisquer outros. Especialmente no período entre 1865 e 1914, ou seja, desde o fim da Guerra de Secessão até ao início da Primeira Guerra Mundial, e que é designado por Gilded Age, que se poderia traduzir por “idade do caroço”, vêem-se surgir vários romancistas que denunciam a sociedade como corrupta, vulgar, inculta, materialista e hipocritamente puritana. É o tempo de Frank Norris, de Theodore Dreiser, de Upton Sinclair e de Sinclair Lewis, cujos romances são outros tantos libelos acusatórios tão cáusticos para com a sociedade americana como o foram os mais negros dos romances de Zola em relação à sociedade francesa da mesma época. Os temas tratados por estes autores são frequentemente produto de investigações jornalísticas escrupulosas na procura dos factos e sem recurso a eufemismos na formulação das ilações a retirar, o que é mais uma criação da cultura americana. Na altura, estes jornalistas eram apodados de muckrackers (literalmente “agitadores da lama”). No entanto, esta veia literária não se esgotou em 1914, bastando para isso mencionar, entre as duas guerras, a obra de John dos Passos, tendo-se prolongado para além da Segunda Guerra Mundial, como demonstram as obras de John Updike e de Tom Wolfe.»
Jean-François Revel, A obsessão antiamericana, pp. 105-107.
[Lisboa: Bertrand, Dezembro de 2002, 225 pp; tradução de Victor Antunes; obra original: L'obsession anti-américaine, 2002]