domingo, 30 de dezembro de 2007

O Melhor de 2007: Cinema


Apesar da dor de cabeça de efeitos alusivamente cataclísmicos que me afecta no momento – verdade confessada, à laia de pedido de misericórdia pelo minimalismo explicativo que acompanha este texto –, consegui finalmente elaborar a prometida lista dos meus 10 filmes preferidos estreados durante o ano de 2007 em Portugal.
Sem mais delongas, ei-los por ordem de preferência (sobre alguns já foram proferidas algumas palavras neste blogue durante o ano):

  1. Zodiac, David Fincher;

  2. Promessas Perigosas, David Cronenberg (Eastern Promises);

  3. Control, Anton Corbijn;

  4. Cartas de Iwo Jima, Clint Eastwood (Letters from Iwo Jima, 2006);

  5. As Canções de Amor, Christophe Honoré (Les Chansons d’Amour);

  6. Livro Negro, Paul Verhoeven (Zwartboek, 2006);

  7. Mysterious Skin, Gregg Araki (2004);

  8. Bug, William Friedkin (2006);

  9. Pecados Íntimos, Todd Field (Little Children, 2006);

  10. Half Nelson – Encurralados, Ryan Fleck (Half Nelson, 2006).

Menções honrosas

  • Alpha Dog, Nick Cassavetes (2006) – um filme violento sobre a degenerescência da actual geração adolescente americana, à boa maneira de um Larry Clark com menos exibicionismo fálico, com excelentes interpretações: Timberlake é uma agradável surpresa;
  • Next – Sem Alternativa, Lee Tamahori (Next) – um filme arquetípico da máquina de sonhos chamada Hollywood: imaginativo, entretenimento na sua acepção mais pura;
  • Paranóia, D.J. Caruso (Disturbia) – surpreendente, um bom thriller, com algumas reminiscências hitchcockianas, e depois, o que dizer de Sarah Roemer?...
  • Super Baldas, Greg Mottola (Superbad) – uma das melhores comédias de adolescentes dos últimos anos, sem grande orçamento, sem grandes truques de realização e com um argumento genial.

Fiascos (por vezes com o mérito de incitar a pura náusea)

  • Ao Anoitecer, Lajos Koltai (Evening) – definitivamente, Michael Cunningham parece teimar em prosseguir o caminho da auto-imolação em favor do melodrama de plástico ou da literatura light: muita choradeira e choque emocional sem a fibra e a consistência de um bom argumento de suporte, adaptado neste caso de um romance menor de uma escritora que vai definhando, Susan Minot, um filme de quinta categoria a puxar à novela venezuelana – sem dúvida, entre os que vi, o pior filme do ano;
  • Assalto e Intromissão, Anthony Minghella (Breaking and Entering, 2006) – exige um Minghella de novo concentrado apenas na arte que o celebrizou, a realização;
  • O Bom Alemão, Steven Soderbergh (The Good German, 2006) – um terrível pastiche de Curtiz (Casablanca, 1942), de Welles e do filme negro americano; a cena final nem ao diabo lembraria na tentativa de profanação de uma obra-prima do Cinema, mas dizem que é cinema experimental...
  • A Estranha em Mim, Neil Jordan (The Brave One) – não terá sido realizado por um impostor que se fez passar pelo admirável realizador irlandês?
  • Peões em Jogo, Robert Redford (Lions for Lambs) – irritantemente panfletário;
  • Rescue Dawn – Espírito Indomável, de Werner Herzog (Rescue Dawn, 2006) – más interpretações, um filme aos solavancos, elíptico, uma sucessão de planos sem raccord, uma autêntica manta de retalhos em filme.

Neutro (ou simplesmente inócuo)

  • Lady Chatterley, Pascale Ferran (2006) – quando vi este filme rememorei um certo passado em que parecia anunciar-se o inexorável declínio do cinema europeu. Planos perfeitos, filme de actores, a espaços introspectivo, porém arrítmico e entediante.

Não vistos (susceptíveis de influenciar as escolhas finais)

  • O Bom Pastor, Robert DeNiro (The Good Shepherd, 2006);
  • Censurado, Brian De Palma (Redacted);
  • Gangster Americano, Ridley Scott (American Gangster);
  • A Morte do Sr. Lazarescu, Cristi Puiu (Moartea domnului Lazarescu, 2005);
  • Paranoid Park, Gus Van Sant;
  • As Vidas dos Outros, Florian Henckel von Donnersmarck (Das Leben der Anderen, 2006).

Nota: Livros, amanhã (se me deixarem).

sábado, 29 de dezembro de 2007

Soundtrack

Há quem diga, de forma deselegante – normalmente, o orgulhoso da piada própria –, que se trata do estudo escatológico de tão odorífera e fisiológica ventosidade humana por recurso à função auditiva.

[As minhas desculpas pela veia boçal que teimo em esconder, mas que se manifesta com especial acuidade quando as férias natalícias me roubam tempo ao ter de cuidar da minha desinquieta e hiperactiva prole.]

Retomando…
O Luís – uma das duas
agradáveis surpresas blogueiras da segunda metade de 2007 – desafiou-me a postar as minhas cinco bandas sonoras de filmes preferidas.
O desafio é complicado para qualquer cinéfilo. Desde logo, há uma dificuldade de natureza adjectiva: BS Original ou respigada? Ainda dificultado por aquelas que poderemos facilmente situar em ambos os campos.
Depois, existe o eterno dilema da separabilidade da banda sonora do filme, isto é, ouvi-la enquanto produto dissociável da obra cinematográfica, despejada da sua natureza plástica e simbólica. Por muito boa que seja a música, será que existe uma perfeita simbiose com a acção filmada e materializada na película? Dava pano para mangas...
Bom, deixando-me de filosofias de vão de escada – e que bom é poder empregar esta horrível expressão sem falar de aborto –, resolvi, em consequência do supra-referido, criar duas listas com as minhas bandas sonoras preferidas, de acordo com a presença ou não do qualificativo “original”.

Banda Sonora Original (por ordem alfabética)

  • África Minha (Out of Africa, 1985), John Barry – realizado por Sydney Pollack;
  • Drácula (Dracula, 1992), Wojciech Kilar – realizado por Francis Ford Coppola;
  • O Padrinho (Godfather, 1972), Nino Rota – realizado por Francis Ford Coppola;
  • Paris, Texas, (1984), Ry Cooder – realizado por Wim Wenders;
  • As Virgens Suicidas (The Virgin Suicides, 1999), Air – realizado por Sofia Coppola.

Banda Sonora (por ordem alfabética)

  • Amadeus (1984) – realizado por Milos Forman;
  • Lost Highway – Estrada Perdida (Lost Highway, 1997) – realizado por David Lynch;
  • Pulp Fiction (1995) – realizado por Quentin Tarantino;
  • Trainspotting (1996) – realizado por Danny Boyle;
  • O Último Contrato (Grosse Pointe Blank, 1997) – realizado por George Armitage.

Duas listas entre tantas que poderia fazer de imediato, e muitas outras cujos filmes decerto me lembrarei mais tarde, lamuriando-me seguramente pela não inclusão.

E com isto tudo, vou atrasando as listas prometidas (está difícil, sobretudo, escolher 10 do conjunto de 20 livros editados em 2007 com a classificação máxima; nos filmes as combinações possíveis para a lista final são, ainda assim, menores).

Ah, e já me esquecia (à hora de publicação). Desafio o
Francisco Valente, o Luís M. Jorge, o Luís Miguel Oliveira, o Pedro Correia e o Sérgio Lavos a postarem as suas preferências.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

O Melhor de 2007: Música


De acordo com o prometido, deixo aqui ficar a lista dos melhores álbuns de música produzidos em 2007, seguindo-se apenas o critério do gosto pessoal, susceptível e possivelmente afastado de qualquer cânone musical doutrinado por qualquer musicógrafo, musicólogo ou simples melómano assoberbado.
Sem mais comentários, eis a lista dos melhores álbuns de 2007 por ordem de preferência:

  1. Radiohead – In Rainbows
  2. The National – Boxer
  3. Electrelane – No Shouts, No Calls
  4. Arctic Monkeys – Favourite Worst Nightmare
  5. LCD Soundsystem – Sound of Silver
  6. Air – Pocket Symphony
  7. Blonde Redhead – 23
  8. Arcade Fire – Neon Bible
  9. Nine Inch Nails – Year Zero
  10. Black Francis – Bluefinger

Desilusões:

  • Desilusão precoce: InterpolOur Love to Admire;

  • Desilusão por exaustão: Smashing PumpkinsZeitgeist;

  • Pseudodesilusão (porque nunca houve ilusão prévia): The White StripesIcky Thumps;

  • Desilusão “Só para contrariar”: Bloc PartyA Weekend in the City;

  • Falsa desilusão (por pura aversão à coquetterie ostentadora, passe a redundância, na blogosfera lusa): Rufus Wainwright – Release the Stars;

  • Auto-ilusão ou “chama acesa” (descontextualizado): em 2008, figurará finalmente música portuguesa no meu Top 10 (aviso: no campo relativo ao ano tenho vindo a seguir o método “fill in blanks”).

Notas: em breve, Livros e Filmes (Top 10).


quinta-feira, 27 de dezembro de 2007


O Fernando Dinis disponibiliza, uma vez mais de forma gratuita, a sua arte na blogosfera. Trata-se do seu álbum Piano Works (para mais informações seguir esta ligação).

Parabéns, Fernando.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

Feliz Natal

Frank Sinatra e Bing Crosby (Natal de 1957) cantam as lendárias "The Christmas Song" (Tormé/Wells) e "White Christmas" (Irving Berlin, 1954):

Chestnuts roasting on an open fire
Jack Frost nipping at your nose
Yuletide carols being sung by a choir
And folks dressed up like eskimos

Everybody knows some turkey and some mistletoe
Help to make the season bright
Tiny tots with their eyes all aglow
Will find it hard to sleep tonight

They know that Santa's on his way
He's loaded lots of toys
And goodies on his sleigh
And every mother's child is gonna spy
To see if reindeer really know how to fly

And so, I'm offering this simple phrase
To kids from one to ninety-two
Although it's been said
Many times, many ways
Merry Christmas to... You!

("The Christmas Song"; Letra & Música: Mel Tormé & Bob Wells, 1944; imortalizada por Nat King Cole.)

Uma pista...


Fincher /// Tóibín /// Yorke

domingo, 23 de dezembro de 2007

Peste Bubónica

Anton Chigurh por Javier Bardem
– How well do you know Chigurh?
– Well enough.
– That's not an answer.
– What do you want to know?
– I'd just like to know your opinion of him. In general. Just how dangerous is he?
– Compared to what? The bubonic plague? He's bad enough that you called me. He's a psychopathic killer but so what? There's plenty of them around.
– He killed three men in a motel in Del Rio yesterday. And two others at that colossal goatfuck out in the desert.
– Okay. We can stop that.
– You seem pretty sure of yourself. You've led something of a charmed life haven't you Mr. Wells?
– In all honesty I can't say that charm has had a whole lot to do with it.

2007 Best Film of the Year – The National Board of Review (em 5/Dez/2007).


E, a talho de foice*, o Top 10 da NBR (os 10 que se seguem, por ordem alfabética do título em português, caso exista):
  • O Assassínio de Jesse James pelo Cobarde Robert Ford (The Assassination of Jesse James by the Coward Robert Ford, realizado por Andrew Dominik);
  • The Bucket List (realizado por Rob Reiner);
  • Expiação (Atonement, realizado por Joe Wright);
  • Juno (Juno, realizado por Jason Reitman);
  • The Kite Runner (realizado por Marc Forster);
  • O Lado Selvagem (Into The Wild, realizado por Sean Penn);
  • Lars and the Real Girl (realizado por Craig Gillespie);
  • Michael Clayton - Uma Questão de Consciência (Michael Clayton, realizado por Tony Gilroy);
  • Sweeney Todd: O Terrível Barbeiro de Fleet Street (Sweeney Todd, realizado por Tim Burton);
  • Ultimato (The Bourne Ultimatum, realizado por Paul Greengrass).

*expressão postada a título terapêutico e profiláctico.

sábado, 22 de dezembro de 2007

Quem tem medo de Lobo Antunes?

Com muita pena minha, os últimos romances de António Lobo Antunes deixaram de ser os meus livros. E o último, O meu nome é Legião, afigurou-se-me como um verdadeiro suplício para a leitura, tal como anterior Ontem não te vi em Babilónia.
No entanto, fica a mente brilhante, porém torturada, do homem que escreveu o portentoso Os Cus de Judas, numa das melhores entrevistas dadas por António Lobo Antunes nos últimos tempos, conduzida de forma superior por Mário Crespo (não obstante o "fica-se grato perante alguém que nos salvou a vida?").
Eis o, apesar de tudo e com a firme convicção daquilo que vou referir, melhor escritor português vivo:


sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

O que aí vem: Música

Parte imprescindível, em lugar de destaque, da lista dos meus 10 álbuns musicais favoritos de 2007…




You didn’t know where to go
Walking around in this flag-waving town
I saw you waiting for a train
And you disappeared
Your face pressed up to the window
You went so far away
And I want to come there too
I want to be with you

(…)

L'ambiente*


Ontem, para execração dos ecologistas e até ao arrepio da minha própria consciência ambiental, fui de carro à estação de metro da Trinità, Palermo, logo Porto. Ora, se no plano teórico esse acto se nos afigura como um evidente e chocante absurdo; na prática, surge quase como uma inevitabilidade dada a distância considerável que separa a minha casa da estação de metro mais próxima. E, acreditem, a decisão pelo automóvel como solução final para a minha deslocação ao centro da cidade não foi nada fácil, uma vez que, perante todas as hipóteses (metro, autocarro, táxi, carro, helicóptero ou fechar-me em casa), as probabilidades, hoje medonhamente altas, de vir a ser vítima do crime da moda, o carjacking, criaram em mim a semente da dúvida, apenas superada (extirpando-a das entranhas) pelo recurso lynchiano da meditação transcendental. Cheguei à conclusão: mas isso só se passa no Rio de Janeiro… perdão, Lisboa!
Bom, deixando-me de tergiversações e de divagações inanes, desloquei-me à Stazione della Trinità porque aí decorria, por organização da empresa Metro de Palermo… perdão, do Porto, a Festa do Livro: uma tenda montada junto à estação de metro que alberga centenas de títulos com descontos que, na maioria dos casos, ultrapassa e muito a metade do preço normal de venda.
Para meu grande choque, confirmei de forma inequívoca a tese do
ambiente miasmático em que tudo se passa, o tal milieu palérmico. Encontrava-me a meio da pesquisa bibliográfica no interior da tenda alva, situada nas traseiras da Câmara do Porto (a irredutível, sendo o último bastião portuense que pugna pela tolerância, liberdade de expressão e espírito de iniciativa) quando sou despertado por um grito a puxar ao uivo perpetrado por uma senhora que apanhou em flagrante delito um ladrão de livros que, prontamente, se esgueirou da tenda com o produto roubado aconchegado no seu pullover (em palerminês). A funcionária, aturdida não tanto pelo roubo, como pelo grito burlesco da senhora (que talvez seja membro efectivo de uma milícia urbana ou de uma organização paramilitar de donas de casa comprometidas com o miasma camorrista), não conseguiu apanhar o meliante, até porque se encontrava sozinha, disse. Mas o choque final estava ainda para vir, à pergunta da funcionária qual o livro que o patifório havia subtraído da tenda de natal, a freguesa miliciana disse: «Foi este. O do Pinto da Costa.»
A funcionária respondeu: «Oh, pronto, se foi o do Pinto da Costa, menos mal…» [risos de orgulho tripeiro da restante freguesia, em que me incluía, embora esquecendo ou descurando o atentado à propriedade intelectual pelos royalties que JNPC deixou de receber]**.

Estamos no tal meio onde vigoram a impunidade e a harmoniosa coabitação com o crime, para além, é claro, do terror dos Super Dragões, do FC Porto e do JNPC, e o medo de corporações como o PS, os Juízes, os procuradores, os inspectores da Polícia Judiciária, todos do Porto, e isto no país dos “furacões”, das passerelles, da pedofilia, do carjacking, dos carros armadilhados, dos neonazis do PNR que militam nas claques lisboetas… e até já há
jornais de tendência cazaquistanesa.

Notas:
* Título em italiano, língua oficial de Palermo.
** O caso relatado na Festa do Livro na Trindade é verídico. Ocorreu ontem, pelas 15 horas. Eu fui testemunha ocular dos eventos subsequentes à subtracção livresca.

O da Boa Memória

Arena AufSchalke - Gelsenkirchen (Alemanha)
Schalke 04 - FC Porto

quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

Para breve


[Aviso: Exercício de produção de expectativas, com fins digna e impudicamente propagandistas, para engrandecimento do número médio de leitores deste blogue – eu, um auto-iludido que há dois anos gravita pela blogosfera, sei que as minhas preferências vos interessam. Previsão do impacto: aumento do número médio de visitantes por dia de 8 ½ (cifra felliniana) para 11 ¾ (permitisse a vida, uma boa hora para despertar). Nota técnica: as médias são representadas em fracção em consequência da índole americanófila deste espaço.]

Divulgarei as obrigatórias listas de fim de ano, que irão exibir, de forma ostensiva, as preferências deste blogue (essa entidade abstracta que me vem dominando de forma impiedosa) em três áreas da manifestação artística: Cinema, Música e Literatura. No entanto, a lista dos melhores livros de 2007, cujo grau de imprevisibilidade foi progredindo para a inexistência (atente-se na coluna do lado direito), apenas será revelada no fim deste ano ou no início do próximo, como efeito imediato do processo de leitura em curso.

Haja tempo e paciência.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

At Last the Secret is Out

At last the secret is out, as it always must come in the end,
The delicious story is ripe to tell to the intimate friend;
Over the tea-cups and in the square the tongue has its desire;
Still waters run deep, my dear, there's never smoke without fire.

Behind the corpse in the reservoir, behind the ghost on the links,
Behind the lady who dances and the man who madly drinks,
Under the look of fatigue, the attack of migraine and the sigh
There is always another story, there is more than meets the eye.

For the clear voice suddenly singing, high up in the convent wall,
The scent of the elder bushes, the sporting prints in the hall,
The croquet matches in summer, the handshake, the cough, the kiss,
There is always a wicked secret, a private reason for this.
W. H. Auden, "VIII: At last the secret is out", Twelve Songs (1936)

[Talvez uma profecia, ou então uma desejo ardente, se haja finalmente materializado. A 8.ª canção de Auden é a última de No Promises de Carla... Todavia, há uma perceptível divergência que não se aplica a uma possível inversão do género – esse, por ambas as vozes, é o mesmo –, apenas agora, depois do fogo desvelado, muito fumo negro, opaco e sufocante será impiedosamente levantado.]

terça-feira, 18 de dezembro de 2007

On not winning the Nobel Prize

Doris LessingPor motivos de saúde Doris Lessing não compareceu à sessão solene de entrega dos Prémios Nobel de 2007, realizada em Estocolmo na passada segunda-feira, dia 10 de Dezembro. No entanto, a escritora britânica, nascida em 1919 na antiga Pérsia, enviou a prelecção (ou oração de sapiência) Nobel, parte integrante e indispensável do ritual dos galardões desde a sua fundação em 1901.
A prelecção de Lessing intitula-se “On not winning the Nobel Prize”, disponibilizada a 7 de Dezembro.
Sou franco, nunca li um livro de Doris Lessing, apesar de, a priori, lhe conhecer alguns dos seus traços biográficos mais marcantes – facto que, essencialmente, ficou a dever-se ao seu rutilante activismo literário –, conhecimento que aprofundei após a entrega do galardão no passado dia 11 de Outubro.
Li o texto, e lembrei-me da prelecção de Auster proferida a 23 de Outubro do ano passado na sessão de atribuição do Prémio Príncipe das Astúrias para as Letras de 2006, quando refere «Que sentido tem a arte, em particular a arte de contar histórias, no tal mundo real? Nenhum que me ocorra agora – pelo menos num sentido prático da coisa. Um livro nunca encheu o estômago de uma criança faminta.» (texto na íntegra,
traduzido por mim e publicado neste blogue em jeito de comemoração no dia em que Paul Benjamin Auster completou 60 anos).
Lessing pega no mesmo tema, introduz-lhe o sabor das histórias que povoaram o seu imaginário em terras africanas*, e, no seu final, narra a fabulosa história ficcionada de uma rapariga negra que, no meio da miséria provocada por um longo período de seca em África, enquanto aguarda numa fila de espera, ao pó e com os seus dois filhos pendurados nas suas vestes, para que um indiano lhe encha de água a vasilha que transporta, lê extasiada um fragmento de Anna Karénina de Tolstói... E de onde veio esse fragmento? Um simples pedaço de uma obra-prima da literatura universal poderá mudar uma vida?

Ler
aqui (em inglês) a excepcional e comovente prelecção de Lessing. A ela, à autora, prometo que irei voltar sob a forma da narrativa longa (vencida a barreira...)

Nota: *Lessing, no decurso do texto, aconselha os jovens escritores a não desistir perante a voracidade mediática do mercado literário nos tempos que correm, e diz:

«E nós, os velhos, apetece-nos sussurrar nesses ouvidos inocentes. “Ainda manténs o teu espaço? O teu solo, o teu lugar único e essencial onde as tuas próprias vozes te poderão falar, a ti sozinho, onde poderás sonhar. Oh, agarra-te a isso, não o deixes escapar.”» Doris Lessing, On not winning the Nobel Prize. Stockholm: Nobel Lecture, December 7, 2007. [tradução livre: AMC]

segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

Tolerância. Coexistência.


Enquanto Tarik agradecia a Alá, na baliza oposta Helton erguia os braços para o Céu.
O Meio também se faz de tolerância...

domingo, 16 de dezembro de 2007

147, The Rocket

Igualou a marca de Stephen Hendry, 8 tacadas máximas (147 pontos).
«Touch of greatness!», they say.

[via A Causa Foi Modificada]

sábado, 15 de dezembro de 2007

Globos de Ouro 2008


A antecâmara, segundo dizem (argumentum ad nauseam).

Melhor Filme – Drama:

  • Expiação (Atonement), realizado por Joe Wright, nomeado para a categoria de Melhor Realizador – [estreia em Portugal: 17/Janeiro/2008]
  • Gangster Americano (American Gangster), realizado por Ridley Scott, nomeado para a categoria de Melhor Realizador – [em cartaz]
  • Michael Clayton - Uma Questão de Consciência (Michael Clayton), realizado por Tony Gilroy – [estreia em Portugal: 17/Janeiro/2008]
  • No Country For Old Men, realizado por Joel e Ethan Coen, nomeados para a categoria de Melhor Realizador – [sem data de estreia]
  • Promessas Perigosas (Eastern Promises), realizado por David Cronenberg – [em cartaz]
  • The Great Debaters, realizado por Denzel Washington – [sem data de estreia]
  • There Will Be Blood, realizado por Paul Thomas Anderson – [sem data de estreia]

Sessão de entrega (65.ª edição – 2008): 13 de Janeiro, Beverly Hilton Hotel (14 de Janeiro, 1 da manhã, hora de Lisboa).

Restantes categorias: consultar a página da Hollywood Foreign Press Association.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

Tiro de partida: Maratona

Provavelmente, o livro na imagem será o último dos editados em 2007 que irá ser objecto de apreciação aqui neste blogue. São 895 páginas quase desprovidas de parágrafos, carregadas de caracteres que formam palavras esparsamente visíveis a olho nu.
Inicia-se a maratona literária cujos primeiros vestígios da linha de meta serão talvez divisados nas cercanias da consoada, tudo dependerá da minha condição física e espiritual ao quilómetro trinta
Até lá, com alguma hipótese de cumprimento, e sem que disso se faça uma promessa política – leia-se mentira –, divulgarei as minhas notas de prova sobre o confuso e atarantado Homem em Queda de DeLillo e do empolgante Aprender a rezar na Era de Técnica, escrito pelo talentoso e incansável, nas imediações de Borges – é a minha opinião –, Gonçalo M. Tavares. Na realidade, o último livro da tetralogia "O Reino" é uma obra a roçar a perfeição, pela profundidade da reflexão, pela genialidade do simbolismo e, sobretudo, pelas suas originalidade e criatividade; porventura, face ao actual panorama das letras lusas, tratar-se-á de um romance inigualável nos tempos mais próximos – infelizmente, Agustina não é eterna...



«(…) as únicas coisas indispensáveis à vida humana são o ar, o comer, o beber e a excreção, e a busca da verdade. O resto é facultativo.»
Jonathan Littell, As Benevolentes (Dom Quixote, 1.ª ed., pág. 13; trad. Miguel Serras Pereira).

O Sol Vermelho dos Nossos Corações

Quando o abrupto Moralista do Regime Pacheco Pereira solta o seu cão raivoso não há ninguém que se vanglorie, por puro temor, de uma supostamente alcançada prerrogativa da imunidade contra a raiva: a próxima diatribe (ou mordedura), fabricada com uma periodicidade quase certa pela sua afinada e mirabolante roleta da maledicência, poderá atingi-lo a si e em cheio.
Normalmente são as audiências e o ufanismo, esta última característica advinda da presumida condição de pai da blogosfera, achando-se no direito de repreender os seus filhos sempre que reputa determinada conduta como uma grave derrogação ao seu código normativo de estrita observância – que não se conhece devido a uma alegada instabilidade emocional ou volatilidade opinativa –, que o fazem salivar por sangue. Insurge-se até com as audiências dos blogues pornográficos, esse obstáculo quase intransponível, popularizado por uma sociedade doente, longe do decoro asséptico da sua doutrina, o grande impedimento para a consecução da sua deificação plena e consequente subjugação, pela força da moral, dos seus súbditos ou prosélitos. Esquece-se, porém, que a única diferença entre si e, por exemplo, esses que ataca reside na manifestação expressa da índole pornográfica dos espaços que gerem: a pornografia tácita – a intelectual – é superiormente sórdida, podre e danosa.

Palavras a mais sobre alguém que, de peito cheio pela soberba, pretende agitar as águas para manter ou expandir a notoriedade.

Oremos:

quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

De Palermo a Banguecoque


Na imagem La Via dei Chierici na Città di Oporto, Palermo (Sicília) segundo Pacheco Pereira.
Abstenho-me de enumerar os variadíssimos indicadores susceptíveis de explicar o clima de miséria e de insegurança que martiriza a minha cidade (onde nasci, onde ainda vivo e onde um dia, espero, serei enterrado), fenómeno cuja transversalidade ultrapassa, e muito, o universo do futebol – actividade que, ultimamente, tem servido de escudo ao verdadeiro combate à corrupção e ao crime de colarinho branco em Portugal.

Seguindo a florescente linha da indigência intelectual, poderia afirmar que o poder político e as forças vivas da região da Grande Lisboa, Os Super Papões, permitiram, com um sorriso cúmplice nos lábios, a prática reiterada do abuso sexual de menores e o tráfico de carne branca, transformando Lisboa na capital dos prazeres carnais – já para nem falar das bombas que por aí vão rebentando… ainda chega a Bagdade, antes de se certificar como Banguecoque.

Afinal, de Palermo (per proteggere…) a Banguecoque (come inside, no cover charge…) são apenas trinta minutos de viagem, tempo médio despendido pelo comentador político nacional (a classe) no estudo e na reflexão dos assuntos sobre que discorre – propensão média para o pensamento asinino.

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

Natal para revisionistas: uma oportunidade

Duas sugestões para abandonar de vez Os Protocolos… e talvez aproveitável para espantar em definitivo os fantasmas de uma vida pessoal e familiar miserável que, normalmente, se transmuta em letra de ódio na blogosfera. São cerca de 1400 páginas para a iniciar o trilho da redenção:

  1. Leni – A Vida e Obra de Leni Riefenstahl, de Steven Bach (Leni: The Life and Work of Leni Riefenstahl, 2007), edição Casa das Letras (na imagem), com prefácio de João Lopes.
  2. As Benevolentes, de Jonathan Littell (Les Bienveillantes, 2006), vencedor do Goncourt 2006, edição das Publicações Dom Quixote – sobre o livro, escrevi esta breve nota no defunto Porque.


«Art is moral in that it awakens.»
Thomas Mann, The Magic Mountain (Der Zauberberg, 1924)


A arte é moral naquilo que desperta.», trad. Óscar Mascarenhas. Creio que a mensagem, assim traduzida para a nossa língua, perde parte da sua potência sentenciadora, embora seja evidente a necessária fuga à perífrase, que, em definitivo, destruiria essa nobre capacidade. Deixo o assunto à discussão dos especialistas...)

domingo, 9 de dezembro de 2007

Filmar com... scanner

Christopher Orr, crítico de cinema da The New Republic, escreve sobre a adaptação cinematográfica de um dos melhores romances de sempre – opinião pessoal e dificilmente alterável por mais tempo que a vida me reserve. Atonement de Ian McEwan estreou ontem no grande ecrã nos Estados Unidos, realizado por Joe Wright, com argumento a cargo do luso-britânico Christopher Hampton e com as interpretações da insossa delicodoce Keira Knightley (no papel de Cecilia Tallis), do ainda duvidoso James McAvoy (no papel de Robbie Turner) e com Vanessa Redgrave (interpretando Briony Tallis na sua fase mais angustiante e dilacerante, e isto aplica-se a qualquer leitor com um mínimo de sensibilidade, ou seja, "acima da Stallone").
Orr começa o seu artigo de forma irónica, embora formalmente errada pela contagem de palavras que “1935”, um número, atrapalha: «Atonement opens in 1935, at a stately manor in the English countryside. (Have I just explained in a dozen words why it will be nominated for Best Picture? Perhaps I have.)» (dispenso-me à tradução).
Possivelmente, vem aí uma decepção para os mcewanianos (grupo em que me incluo sem reservas) ou para os avassalados por Expiação.
Sem querer passar por um agoirento de quinta categoria, ou então, um daqueles que esperam por opinião validada para conformar a sua, cedo desconfiei deste produto cinematográfico: Wright e Knightley, Orgulho e Preconceito, pretensão de chegar ao “patamar Ivory” num filme de época baseado numa obra de romancista consagrado, apesar de Hampton. Em suma, muita beijoquice e toque sensual reprimido, com guarda-roupa a puxar à memória o horrível odor a naftalina, de elocução quase shakespeariana, em jardins soalheiros e luxuriantes.
No subtítulo, Orr diz que «a fidelidade canina [do realizador] a um grande livro não faz um grande filme». E mais adiante, no corpo do artigo, explica: «O que falta ao filme é a prosa e a ingenuidade de McEwan, cujo literalismo de Wright não consegue alcançar. Ele transcreve fielmente o romance para o ecrã, mas nunca encontra uma linguagem cinematográfica – não, o martelar da máquina de escrever não conta – que poderia fazer do filme algo mais que uma obra de arte em segunda mão, um livro filmado.» [tradução: AMC]

E voltamos uma vez mais ao tema quente da interpenetração da Literatura e do Cinema – o substantivo empregado é o correcto, dada a bidireccionalidade relacional, apesar de aqui se invocar apenas uma das vertentes –, dos graus de liberdade na adaptação de uma obra consagrada ao grande ecrã, redundando sempre no preso por ter cão

Se assim é, é uma pena. E depois, transformar a culpa íntima e perpétua, profunda e pungente, de Briony, a alma da obra-prima de McEwan, num processo expiatório dentro de um talk show televisivo é no mínimo burlesco, para não dizer profano, especialmente quando se abusa do literalismo adaptativo.

Entretanto, as vacas, esses bichos ruminantes impenitentes, continuarão a pastar celulóide nas colinas de Hollywood.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

Um cordeirinho por leão

Robert Redford, Peões em Jogo (Lions for Lambs, 2007)
Robert Redford fala, contesta, reivindica, vocifera… mas não faz, não consegue, não pode e não tem fôlego para realizador, é uma perfeita nulidade. É um desperdício...
Em suma, para quem exibe, e se gaba de, toda a sua fúria leonina, só consegue chegar à inocência seráfica de um cordeirinho desprotegido, inutilizando a arma, habitualmente letal, da arte panfletária, e numa ironia haraquiriana pondo-se a jeito, sem esforço da contraparte, dos lobos (ou falcões) famélicos que critica.
O trio Redford, Streep & Cruise não é necessariamente sinónimo de qualidade, apesar dos auspícios político-hollywoodianos para os Óscares 2008 – cerimónia de entrega a realizar no próximo dia 25 de Fevereiro, no Kodak Theatre.
Sem ritmo, sem génio e verdadeiramente kitsch.

Ah, e que bem me souberam aqueles momentos em que, de forma intermitente, ia passando pelas brasas – o meu agradecimento aos responsáveis pela climatização das salas de cinema UCI (ex-AMC).

quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

Brutalidades – II

[Intróito: tal como havia prometido, apesar do imenso atraso devido a uma pequena turbulência emocional, eis a 2.ª e última parte do tema “Brutalidades”, aberto sábado passado com o livro de Cormac McCarthy]

Promessas Perigosas de David CronenbergCresci a ver filmes de Cronenberg. É verdade, parece tortuoso ou eventualmente deformatório num processo salutar de construção e aperfeiçoamento da personalidade.
Ainda era adolescente na fase pós-púbere, com as excedentárias, e agora irrecuperáveis, reservas de tempo e uns parcos escudos para as sessões diárias de filmes em reposição no extinto Cinema Terço – quando aqueles me escapavam durante a denominada época comercial –, ou ainda carregando as monstruosas e inestéticas cassetes de VHS que alugava nos outrora cogumélicos clubes de vídeo, e não havia um único filme realizado pelo cineasta canadiano que não passasse pelos meus olhos de jovem cinéfilo – de qualidade ou não, isso pouco importa, na altura idolatrava John Carpenter, imagine-se.
Cronenberg, com a precisão de um relógio suíço – daqueles exorbitantemente caros –, consegue assolar-me através de uma súbita emergência síncrona de sentimentos paradoxais, culminando numa amálgama indescritível de "efeitos de prova" mutuamente exclusivos.
Cronenberg é horror, náusea, fascínio e encanto. Desde o devaneio de um opiómano com baratas falantes inspirado numa estranho romance autobiográfico de Burroughs; passando pela mais horrorosa forma de suicídio que uma mente atormentada pode conceber, bater com a própria cabeça, com a boca aberta, numa tesoura cravada no lavatório, esta última perversidade baseada num thriller de Stephen King; indo ao estranho fascínio por membros estropiados, cicatrizes colossais e corpos retalhados em acidentes de viação de Ballard; até a um útero trifurcado e uns arrepiantes e bizarros instrumentos ginecológicos de invasão. Apesar de tudo e de alguma coisa mais, Cronenberg possui o dom raro da indução da repugnância suprema no espectador ao mesmo tempo que, pela mão invisível da vivacidade da trama e da destreza cénica, o agarra sem redenção à cadeira – embora, para ser franco, tenha de referir que foi com Festim Nu de Cronenberg que inaugurei um dos raríssimos momentos na minha já longa experiência de espectador de cinema: abandonei a sala a meio da projecção do filme por pura náusea.

Promessas Perigosas, chamaram-lhe assim os habitualmente originais nomeadores portugueses, é o seu filme mais recente – Eastern Promises, estreou na passada quinta-feira nas salas de cinema portuguesas.
Neste filme, Cronenberg volta a apostar no realismo do quotidiano de degradação e de violência que enxameia sociedades contemporâneas do mundo ocidental. Se em Uma História de Violência (A History of Violence, 2005) a fábula da mundanidade e da perversão é transversal a um território que se uniformiza, jogando na interpenetração do rural e do urbano ou na diluição das fronteiras entre o local de refúgio e a inescapável montra citadina da fraqueza humana, em Promessas Perigosas Cronenberg muda o eixo para a colossal Londres e para o recrudescimento da rivalidade e da violência entre grupos rivais pertencentes ao submundo das máfias da Europa de Leste, que se digladiam ostensivamente numa guerra sem quartel nas ruas da grande metrópole, e cujos fulgor e expansão assentam na mesmíssima fragilidade ocidental, enredada na defesa cega e intransigente dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
Neste filme, o cineasta canadiano, que parece haver recriado o paradigma performativo do bom vilão – cínico, cerebral, insuspeito, um bloco de gelo em ebulição interior e... mestre de artes marciais –, volta a apostar em Viggo Mortensen para protagonista, conduzindo, desta vez, a cândida, terna e lynchiana Naomi Watts para o confronto amoroso, com um lirismo explícito quase inédito nas obras do realizador.
Sobre Mortensen não há muito a dizer, está talhado para aquele papel de inexpressividade facial, mesmo quando, no ponto mais marcante em termos visuais da película, tem de enfrentar em pelote um duo de assassinos nos banhos públicos – peço perdão aos fãs, mas Mortensen lembra-me Chuck Norris no esplendor da sua cabotinagem. Todavia, Cronenberg parece saber tirar partido disso mesmo, espreme-o até ao tutano cedendo até, neste caso, aos devaneios fílmicos do actor.
Finalmente, na segunda linha encontramos duas interpretações seguras e convincentes: a do actor francês Vincent Cassel no papel do histriónico e perturbado Kirill, e a do actor alemão Armin Mueller-Stahl representando de forma magistral o abominável avozinho russo Semyon, pai do primeiro e líder de uma das facções do grupo mafioso russo Vory V Zakone.
Com Promessas Perigosas ainda não se chegou à intensidade dos aplausos, enérgicos e fervorosos, com que a crítica cinematográfica incensou no ano anterior Uma História de Violência. Classificam-no como um filme menor por comparação ao seu irmão mais velho. Pois, só para contrariar, e servindo-me livremente do recurso da comparação, gostei mais deste, sobretudo dos seus inúmeros pormenores visuais de um vermelho vivo, pulsante, que parecem simbolizar a tal debilidade (ou fraqueza, por definição) da natureza humana.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

Tomar Partido [em atraso]

Parabéns atrasados ao Jorge Ferreira pelo 4.º aniversário do seu Tomar Partido.

[imperdoável este esquecimento – que nada teve a ver com questões clubísticas, até porque essas seriam razões apelativas à lembrança, vide sábado –, agravado pela proximidade de datas de aniversário entre os dois blogues. Um bom portista, parabeniza. E fiquemo-nos pelos aniversários...]

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

Agradeço

Nós, portugueses, somos um povo tão peculiar… ah, e a nossa língua espelha tão bem a nosso temperamento pátrio.
Pois, “obrigado”, palavra que usada como interjeição significa agradecido, grato: gracias, thank you, grazie, merci, danke, dankzij,…
Mas, obrigado cheira a dever, a imposição, a um acto forçado ou até contrariado, quando muito revela indolência do adimplente para terminar a frase.
Agradecemos com resignação, porque tem de ser… que maçada, obrigado!
Neste momento sinto-me recompensado, e daí não resulta necessariamente uma obrigação, tout court, para agradecer, mas uma viva vontade de retribuir as palavras amáveis e despretensiosas de um conjunto de “amigos invisíveis” – não me conhecem, não sabem o que faço, estou longe das fontes de poder, apenas escrevo desde uma cidade lúgubre, deprimida, que se desertifica e depaupera a um ritmo inexorável; não me podem pedir emprego ou notoriedade, uma cunha ou protecção, apenas amizade que neste pequeno grande mundo, a que se convencionou chamar de blogosfera, se traduz por reciprocidade. Basta isso, apenas isso.
Agradeço aos meus queridos amigos as felicitações que me enviaram pela celebração do 1.º ano de existência deste blogue e dos meus 2 anos a divagar na blogosfera:
André, Carlos, Fátima, Henrique, Lutz, Manel e Paulo.

[agradeço ao Technorati pelos seus serviços… responsabilizando-o no caso de me haver esquecido de alguém.]

domingo, 2 de dezembro de 2007

Facto

Domingo. Uma liturgia. Deambulo pela blogosfera sem destino, sentindo que por aqui se abateu a penúria de escrevente, mesmo de um leve resquício de pulsão criativa que pudesse encher de confiança um ego macerado: já não consigo auto-iludir-me.
Uma reminiscência, no entanto, batia ao de leve nesse campo neuronal devastado. 2 de Dezembro de 2006
É verdade, há um ano iniciava-se a minha peregrinação contumaz pela blogosfera, um ano depois da diletante e sublimada estreia moura-e-cunhiana com o
Porque17 de Dezembro de 2005.
Li algures que o cansaço não é a causa mas o efeito da falta de criatividade e de originalidade. Concordo. Sem vestígios, asseguro-vos, de uma pretendida autoflagelação pública: estou cansado, e não sei aonde me levará este cansaço. Sei que, infelizmente, vai atravessando muitos instantes da minha existência.
Mais um ano...

sábado, 1 de dezembro de 2007

What's the most you've ever lost in a coin toss?

Brutalidades – I

Um livro e um filme (este último, para o capítulo II).

O livro
Cormac McCarthy, esse grandessíssimo autor da sublime escola literária norte-americana contemporânea, novelista que vou aprendendo a admirar, residente no Novo México, nascido em Providence, Rhode Island, em 1933, escreveu um dos melhores romances mascarados de thriller que li nos últimos tempos: Este País Não É para Velhos (No Country for Old Men, 2005).
Com uma economia e uma precisão narrativas, McCarthy constrói uma fábula sobre a perversidade e o apodrecimento humanos provindos de uma decadência, aparentemente irreversível, do outrora admirável Novo Mundo: terra dos bravos e dos homens livres, agora terreno fértil para as elucubrações literárias – alguém disse, e não me lembro quem, que o grau de excelência da Literatura (entendida como profusão de livros e do número de autores coetâneos de altíssima qualidade) representativa de um lugar, de uma região, de um país num dado momento é directamente proporcional ao seu grau de anomia, de desintegração e de desenraizamento sociais.
McCarthy e DeLillo são, neste momento, as vozes literárias que, de forma precisa, testemunham e alertam para essa desolação travestida de um, tão inútil como afanoso, fervor vivencial que invadiu a sociedade americana, cujo destino real – lê-se nas entrelinhas –, quiçá num futuro mais próximo que o conjecturado, poderá ir muito além da ficção, da visão distópica modelada pela obra de arte.
Este País Não É para Velhos é, na sua aparência, uma obra de ficção policial: um frio e calculista assassino, Anton Chigurh, a soldo dos grandes traficantes de droga que operam na fronteira territorial entre os Estados Unidos e o México, e um banal mecânico de província, soldador de peças de automóveis, veterano da guerra do Vietname, Llewelyn Moss, que descobre, enquanto caçava na paisagem desértica da fronteira, uma mala recheada com mais de 2 milhões de dólares, um carregamento de heroína mexicana e um estranho morticínio que apenas deixou um homem moribundo e uns tantos cadáveres espalhados pelo terreno.
Contado assim, o enredo do penúltimo romance de McCarthy não passaria de mais um thriller paraliterário, potencialmente hollywoodiano, pejado de cenas de uma violência gratuita, abordando, com uma reflexão exasperantemente débil e minimalista, a eterna disputa entre o bem e o mal, neste caso transformado no visto e revisto jogo do gato e do rato entre o criminoso e o inocente; em suma, uma história sobre a presciência, a frieza e a sabedoria de um assassino que se empenha numa busca desenfreada para recuperar o dinheiro sujo que foi roubado por um inexperiente e anódino homem da província, com uma vida banal e de escassa inteligência prática.
No entanto, é precisamente aí, nesse jogo de ilusão e de aparência, que reside o desafio que McCarthy lança ao leitor. A lhaneza dos diálogos, o emagrecimento descritivo e a frenética sequência dos factos exigem ao leitor atento, amante das artes literárias, um esforço de desconstrução: ler um subtexto supostamente inexistente, mas que o autor, de forma engenhosa, deixou visível, como o novelo de fio de Teseu que desenrolado o pôde conduzir à saída do labirinto de encontro à sua amada Ariadne.
McCarthy mostra-nos o fio da narrativa através das intervaladas reflexões do velho xerife Ed Tom Bell, ex-combatente da II Guerra Mundial, sobre o envelhecimento e a memória de um passado obscuro que nos persegue – «Ele disse que eu estava a ser demasiado severo comigo mesmo. Disse que era sinal da velhice. Tentar emendar os erros que se cometeram. Se calhar há nisto alguma verdade. Mas não é a verdade toda. Concordei com ele quando disse que não havia muita coisa boa para dizer sobre a velhice e ele disse que tinha descoberto uma e eu perguntei o que era. E ele disse: É que não dura muito.» (pág. 203) –, sobre a inadaptação por um país em que a violência parece tomar conta de vida dos seus filhos, embora, com um mínimo esforço de memória, se possa concluir que toda a sua história foi construída sob o domínio da violência, desde as primeiras investidas territoriais dos primeiros colonos, passando pela Guerra da Secessão, acabando no Vietname (o romance decorre no final da década de 70 do século XX) – «Pensei na minha família e pensei nele, sozinho naquela velha casa, na cadeira de rodas, e dei comigo a pensar que este país tem uma estranha história e bem sanguinolenta, diga-se, chiça.» (pág. 205); «As pessoas dizem que foi o Vietname que pôs este país de rastos. Mas eu nunca acreditei nisso. O país já estava em muito mau estado. O Vietname foi só a cereja em cima do bolo.» (pág. 214).
É nestas reflexões de Ed Tom, verbalizadas num estilo de linguagem coloquial, em que se funda e materializa a mensagem, transformando a aparente acção principal num teatro de sombras do inexorável caminho para o apocalipse de uma sociedade corrupta, perversa e materialista que deprecia o valor absoluto da vida humana, estabelecendo-se um paralelismo bíblico com as profecias de São João Evangelista determinadas no último dos Livros do Novo Testamento.
«Dizem que os olhos são as janelas da alma. Eu cá por mim não sei de que é que os olhos são as janelas e se calhar até prefiro não saber. Mas há uma outra maneira de ver o mundo e outros olhos para o ver e é por esse caminho que nós vamos. Eu próprio o trilhei e conduziu-me a um lugar na minha vida que nunca imaginei chegar a conhecer. Algures por aí anda um profeta da destruição, um profeta genuíno, de carne e osso, e eu não o quero enfrentar.» (pp. 15-16).
Com este romance, Cormac McCarthy traz-nos de novo uma atroadora e descoroçoante alegoria. Uma narrativa com vida própria, autónoma, para além da vontade do próprio escritor, viril, brutal, desoladora e inóspita, sem mesuras e lamentos, expurgada de derivações metafísicas ou de pretensas respostas sobre o declínio da América e da nossa civilização, e a percebida inexorabilidade – o espírito deste tempo – na aproximação das trevas.

Classificação: ***** (Muito Bom)

Referência bibliográfica:
Cormac McCarthy, Este País Não É para Velhos. Lisboa: Relógio D’Água, 1.ª edição, Outubro de 2007, 231 pp. (tradução de Paulo Faria; obra original: No Country for Old Men, 2005).


Nota: Os fabulosos irmãos Coen (Joel e Ethan) – responsáveis por alguns dos filmes do meu Olimpo íntimo e intransmissível: Fargo (1996) ou O Grande Lebowski (The Great Lebowski, 1998) – produziram, realizaram, montaram e escreveram o argumento do filme homónimo – estreou na semana passada nas salas de cinema norte-americanas –, com interpretações de Tommy Lee Jones, Javier Bardem, Woody Harrelson, entre outros. Tanto a crítica, como a esmagadora maioria dos espectadores, têm demonstrado, empregando algumas hipérboles encomiásticas, a sua admiração irrestrita pelo último filme desta dupla.

Por aqui vou esperando, dando por mim a desejar que a história, na versão fílmica dos irmãos Coen, haja logrado captar a verdadeira essência do romance de McCarthy. Todavia, enfatizando a ressalva, a um filme dessincronizado com a obra literária que lhe deu origem não pode, nem deve, seguir-se uma imediata sentença de repúdio ou de rotulagem de inabilidade na adaptação do romance de base. São artes diferentes que merecem um tratamento diferenciado. Normalmente, a natureza descritiva de um livro é incompatível com o imediatismo imagético de uma obra cinematográfica. De outro modo, correríamos o risco de cair na célebre imagem satírica de Hitchcock das duas cabras que pastavam bobines de celulóide talvez nas colinas de Hollywood, em que a primeira pergunta à segunda se esta está a gostar da refeição; ao que a segunda responde: “Nada mal!... Mas, gostei mais de comer o livro…»