sexta-feira, 30 de junho de 2006

Estranhas amizades

O que os une?
The Smiths, New Order, The Cramps, Echo & The Bunnymen, Bauhaus, Siouxsie & The Banshees, The Lords of the New Church, A Certain Ration, Blondie e Billy Idol.

Para além destes senhores haverem povoado o meu imenso imaginário musical com as mais sublimes e esfusiantes sonoridades durante estas quase três décadas e meia.

Quem os uniu, já reuniu outros notáveis e ilustres contemporâneos:
Joy Division, The Cure, The Dead Kennedys, The Clash, P.I.L., Sisters of Mercy, Flock of Seagulls, The Specials, Depeche Mode e Killing Joke.

N.V.

2.ª Feira nesta grafonola.

Lá se vai o meu desejado subsídio! [Adenda]

Parece incrível mas pelos vistos é verdadeiro:

«Câmara do Porto condiciona subsídios. Instituições devem "abster-se de criticar publicamente o município"».

Culpa é de quem renovou pelo voto um desastre portuense chamado Rui Rio, cuja obra mais marcante foi a de destruir a até aqui deslumbrante Avenida dos Aliados*, sala de visitas da minha nobre cidade.

Depois lemos esta pérola autoritária do seu sempre estimável amigo do lado de lá da ponte:

«Menezes obriga jornais de Gaia a cobrir actividade camarária».

Não fossem os meus pais e a educação lusa que, apesar de tudo, eu e a minha mulher pretendemos dar à nossa filha, vosotros habríais de ver el sitio magnifico donde nosotros íbamos a vivir.


*Adenda: a este propósito ver no magnífico blogue de Carlos Romão, A Cidade Surpreendente, o antes e depois da intervenção destruidora na Avenida dos Aliados.

Wright, Hampton & McEwan

Da esquerda para a direita: Joe Wright, Christopher Hampton e Ian McEwan
À primeira vista esta associação de nomes parece retirada de um dos livros do profícuo – e multimilionário – escritor norte-americano John Grisham, retratando as suas poderosas e corruptas sociedades de advogados. Todavia, para o leitor mais atento há aqui nestes três apelidos, pelo menos, uma indelével associação: o realizador, o dramaturgo e argumentista, o escritor e também argumentista.
O que os une?

A sétima arte e Expiação
Joe Wright, jovem britânico de 34 anos – claro que é jovem, ou até uma criança, tem a minha idade! –, realizador da última adaptação cinematográfica do romance de Jane AustenOrgulho e Preconceito”, já se encontra a rodar o filme “Expiação”, baseado na obra-prima do prodigioso escritor inglês Ian McEwan.

O romance
Expiação (Atonement, 2001) é, no meu entender, o melhor romance de McEwan, a par de Amesterdão (Amsterdam, 1998) – não esquecendo que o primeiro foi finalista (shortlist) do Booker Prize de 2001 (vencido por Peter Carey com A Verdadeira Historia do Bando de Ned Kelly) e que o segundo venceu o prestigiado prémio em 1998.

O argumento
A adaptação do romance está a cargo de Christopher Hampton, filho de pais ingleses e acidentalmente nascido há 60 anos nos Açores, é um dos nomes cimeiros da dramaturgia britânica, sendo de sua autoria as peças Dangerous Liaisons (adaptada do romance do escritor francês Choderlos de Laclos, Les liaisons dangereuses) e Tales From Hollywood, mais tarde adaptado para televisão. Traduziu para inglês peças de Tchekhov, Ibsen, Molière, e tem-se destacado pela adaptação cinematográfica de obras de nomes insignes da literatura mundial, como Jane Austen, Graham Greene, Joseph Conrad, Horvath ou Ibsen. Para além da responsabilidade pelo argumento de Ligações Perigosas – com o qual arrecadou, em 1989, o Oscar para o melhor argumento adaptado –, são de destacar outros filmes como Eclipse Total onde se retrata a vida atribulada do jovem poeta francês Arthur Rimbaud e a relação mantida com Paul Verlaine; Carrington, filme realizado pelo próprio Hampton, com Jonathan Pryce e Emma Thompson interpretando o papel da famosa pintora; o fabuloso Mary Reilly com as soberbas interpretações de John Malkovich e Julia Roberts; O Americano Tranquilo de Philip Noyce, com Michael Caine.

O filme
Finalmente, como se aquela tríade não bastasse, façam o favor de atentar nos nomes que integrarão o elenco: Keira Knightley e James McAvoy, interpretando os injustiçados Cecilia e Robbie, respectivamente; Vanessa Redgrave, com o papel da arrependida e objecto da dura expiação Briony, recordando, enquanto narradora, o doloroso passado; Kristin Scott Thomas, e uma das minhas actrizes favoritas, a doce Emily Watson.

Estreia
Segundo o sítio da
IMDB, o filme estreará apenas em 2007.

Traulitadas

Prova-se à saciedade que, como diz o Pedro Correia recorrentemente no seu Corta-Fitas, o futebol é o ópio do povo. Basta o decurso de dois singelos e aprazíveis dias sem futebol e a injecção brasileira de patriotismo eScolarizado perdeu a sua potência sedativa.
A recente efervescência entre os irascíveis
blasfemos e o epifenómeno bloquisto-mediático Arrastão centra-se na medição do grau de malvadez dos regimes autocráticos de direita e de esquerda. Sugiro que para o efeito se crie uma nova disciplina no campo das ciências: a Autocratimetria.
Se por um lado há Hitler, Mussolini, Franco, Pinochet e se quiserem até Getúlio Vargas e Salazar, por outro temo Estaline, Ceausescu, Mao Tsé-Tung, Pol Pot… e fico-me por aqui.
Com isso, nota-se que a 1.ª Guerra Civil Lusa na blogosfera está em pleno período de incubação.
Meçam lás a pilinhas de direita e de esquerda e depois sistematizem a informação em tabelas de dupla entrada.

Vamos aos livros, que se faz tarde!
Aqui vai um livro que recomendo aos… hetero não homofóbicos (classe na qual me incluo), aos homofóbicos e hetero-de-pendor-marialva (aconselhando, simultaneamente, a ingestão de uma pastilha rosa de Xanax 0,5 mg antes da leitura e de uma violeta de 1 mg para depois), aos homo em geral, e aos Presto em particular.

Bem, isto foi para dizer que gostei da última prosa do Frederico Lourenço, «A Máquina do Arcanjo». Obra de não-ficção, de tom eminentemente confessional, onde o autor/narrador discorre, sem qualquer tipo de parcimónia ou de um excessivo pudor de Tartufo, sobre a sua devoção católica, as suas preferências sexuais e o seu período de transição da adolescência para a idade adulta, que, para o autor, representou a passagem do celibato auto-imposto para a vida sexual activa, dando a conhecer de que modo essa assunção afectou o seu trajecto profissional: abandonou o estudo da música e dedicou-se às letras, tendo enveredado por um estudo aprofundado da cultura helénica – tal como hoje o conhecemos.
Em A Máquina do Arcanjo aparece-nos um Lourenço mais solto, temerário até, se o compararmos com o Frederico de «Amar não acaba» (ed: Cotovia, 2004), mais reservado, cauteloso e explicativo.
Neste livro apesar de Frederico não descrever as cenas de sexo – à laia de um Brett Easton Ellis (recorrendo-se a um exemplo de um autor contemporâneo) e que confessa sentir algum pudor num possível exercício do género –, há toda uma tensão que se desprende no ar e que enxameia a sua leitura, porque construído sob uma putativa paridade entre casais heterossexuais e homossexuais, embora a censura social sentida na pele pelo próprio autor esteja sempre presente ao longo da narrativa.
Depois, tal como no Amar não acaba, o Frederico revela certos enlevos pessoais que me dizem muito; principalmente quando escritos pela pena de um alfacinha de gema – como é o caso – que só mais tarde descobriu o Porto, o Douro e o Minho, e que fazem palpitar o coração de um nortenho mais ou menos convicto da paixão pelas suas raízes, sem que com isso me refira aos tacanhos divisionismos e às apologias da guerrilha regional – isso fica para a clubite futebolística, da qual partilho.
Para acabar, e em jeito de sabatina, A Máquina do Arcanjo é um subtil exercício de resistência ao trauliteirismo homofóbico.

Referência completa:
Frederico Lourenço, A Máquina do Arcanjo, Cotovia, Abril de 2006, 96 pp.

quinta-feira, 29 de junho de 2006

Actualizar...

…antes que regresse o Mundial.

Consumada a minha férrea vontade, eis os blogues que, acabadinhos de sair da blogobstetrícia, entram para a secção de neófitos:

Boas divagações!

quarta-feira, 28 de junho de 2006

Nosce te ipsum

Da crítica e do Booker Prize
Grande parte dos livros, obedecendo a escrupulosos critérios editoriais de carácter meramente comercial, trazem na capa, na contracapa e/ou nas badanas frases curtas, apelativas e bombásticas enaltecedoras da eminente qualidade da história que se desenrolará naquelas páginas impressas. Muitas, se atentarmos nas recensões de base, estão completamente descontextualizadas daquilo que o crítico citado, em boa verdade, pretendeu preconizar. Outras são retiradas de publicações de qualidade duvidosa, cujos nomes aparecem num tipo de letra que rivaliza com as tais cláusulas abusivas tão típicas dos contratos celebrados com as beneméritas empresas seguradoras.
Contudo, e seria um exercício deveras falacioso se não o dissesse, há asserções desse género que me cativam, mesmo que de forma subliminar, e outras – poucas – que acertam no alvo.
Um exemplo destas últimas:
«O Mar é indispensável para quem leva os livros e a literatura a sério. Um romance indiscutivelmente brilhante».
Segundo a editora Asa, esta afirmação é de autoria do recenseador do periódico norte-americano
USA Today relativamente ao último romance do escritor irlandês John Banville «O Mar», vencedor do Man Booker Prize for Fiction de 2005.
Fui ver e a neve caía do azul cinzento… Perdão, a dita
recensão é de Deirdre Donahue, que considera o romance de Banville sublime e uma “extraordinária meditação sobre a mortalidade, a dor do luto, a morte, a infância e a memória” [tradução livre].
Muitas outras vão neste sentido – por exemplo esta no Independent por John Tague –, porém aquela frase inicial de Donahue substancia o apelo da narrativa, fortemente elaborada, ao grau de introspecção e de lenta degustação à medida que nela vamos avançando. Não é um page-turner, é, ao invés, um delicado page-returner – e perdoem-me o uso destes inevitáveis estrangeirismos.
Muito se falou acerca deste livro a propósito da inesperada atribuição do prémio máximo da literatura de ficção britânica (Ilhas Britânicas, Commonwealth e República da Irlanda). Por exemplo, no
New York Times, a habitualmente maniqueísta, truculenta e corrosiva Michiko Kakutani desanca, sem algum tipo de pudor, na prosa do escritor irlandês, chegando ao ponto de lhe chamar um romance “frio, fastidiosamente árido e de escrita espaventosa que contrasta radicalmente com a energia vibrante que irradia de outros nomeados para o Booker” [tradução livre]. Curiosamente, no mesmo periódico há uma crítica quase que diametralmente oposta, publicada apenas vinte e seis dias depois, de autoria de Terrence Rafferty. Num ponto dou razão a Kakutani, o ano de 2005 foi uma das melhores colheitas de sempre para a literatura de ficção britânica, desde logo se atentarmos nos restantes cinco finalistas (shortlist, 6 livros) derrotados por este livro de Banville: «Nunca Me Deixes» de Kazuo Ishiguro (Gradiva), «A Acidental» de Ali Smith (Bico de Pena), e os ainda não lidos e traduzidos para português «On Beauty» de Zadie Smith, «Arthur & George» de Julian Barnes e «A Long Long Way» de Sebastian Barry; não esquecendo os livros «Sábado» de Ian McEwan (Gradiva) e «Shalimar, o palhaço» de Salman Rushdie (Dom Quixote), ou mesmo «Slow Man» do sul-africano Nobel da literatura J.M. Coetzee, que se ficaram pela primeira lista de finalistas (longlist, 17 livros).

Do aforismo
Conhece-te a ti mesmo” é na realidade a melhor frase para descrever este livro. Esta máxima, na sua versão latina, é atribuída a Cícero enquanto se dirigia, em discurso, ao senado romano. No entanto, as suas origens são gregas – a expressão original é “gnothi seauton” –, as palavras estão gravadas na parede do Templo de Apolo em Delfos, desconhecendo-se o seu autor, embora seja considerada a base de toda a filosofia de Sócrates. Este aforismo traduz a necessidade de cada um reconhecer os seus próprios defeitos e problemas antes de apontar o dedo ao próximo. Isto significa que o primeiro passo para a resolução de grande parte dos nossos problemas parte do reconhecimento e da assunção deles mesmos, cuja mente não dispõe da solução mas que esta reside na mente dos outros. Em suma, a solução do problema resulta, quase sempre, da interacção entre os indivíduos mediante a troca de experiências e a compreensão mútua.

Do romance
Este é o retrato de Max Morden, no ocaso da vida, diletante e um projecto de historiador de arte, que concentra os seus esforços no estudo do pintor francês Pierre Bonnard e na relação com a sua companheira Marthe, estabelecendo uma certa analogia com a sua mulher Anne Morden, cujas consequências do seu trágico desaparecimento marcam a narrativa, na medida em que o assaltam as dolorosas e difusas rememorações da infância, de uma vida atribulada enquanto filho de uma família despedaçada pela escassez de afectos e de bens materiais, assim como pelo precoce abandono do lar perpetrado pelo seu pai.
A narrativa é delimitada por dois acontecimentos marcantes: as recordações das suas férias de Verão em Ballyless, tinha Max 11 anos, e a recente morte da mulher, Anne, que o conduzem à revivescência desse Verão, ocorrido há cinco décadas atrás, onde conhece a família Grace na Casa dos Cedros, junto ao mar, e o levam, após o decurso destes anos, a instalar-se num dos seus quartos.
Max é, agora, um velho amargurado e ressentido, que reconhece, através das tais rememorações, subliminarmente autocríticas, a vacuidade que sempre pontuou a sua existência, denegando as suas próprias imperfeições, vícios e incapacidades, à laia de Sartre que professava que o inferno são os outros.
A edição portuguesa de O Mar, de responsabilidade da Asa, contém 166 páginas. Todavia, a densidade narrativa é de tal ordem que as 166 se transformam em 332 páginas. Podê-lo-emos considerar como um exemplar barroco, na medida em que Banville explora ao máximo e com mestria as capacidades da linguagem e da narrativa. Um exemplo:

«Ali parado naquele cubículo de luz branca, vejo-me transportado por momentos para uma praia distante, real ou imaginada, não sei bem, embora os detalhes possuam uma definição onírica precisa, estou sentado ao sol num rebordo duro de areia xistosa e seguro nas mãos uma grande pedra azul, lisa e macia. A pedra é seca e quente, pressiono-a contra os lábios, possui um sabor salgado evocativo do fundo do mar, de ilhas distantes, de lugares perdidos sob folhagens imensas, de frágeis esqueletos de peixe, de destroços e de restos em decomposição. A leve ondulação à minha frente junto à linha de água sussurra numa voz animada, segredando impetuosa uma catástrofe antiga, o saque de Tróia, talvez, ou o desaparecimento da Atlântida. As margens são salgadas e brilhantes. Pérolas de água desfazem-se numa corrente prateada na pá de um remo. Vejo ao longe o barco negro a aproximar-se imperceptivelmente a cada instante que passa. Eu estou lá. Ouço o silvo da vossa sirene. Estou lá, estou quase lá.» (pp. 84-85).


Avaliação final
O Mar é um romance sublime, minimalista – como alguns lhe chamaram – e verdadeiramente inebriante, que nos alerta para o perigo iminente, que espreita ao virar de cada esquina, da tenebrosa amargura e do sombrio ressentimento que, de forma inelutável, uma vida mal vivida nos poderá determinar e marcar para todo o sempre.

terça-feira, 27 de junho de 2006

Trinta e Um

Número da desordem que nunca foi tua no teu modo circunspecto de encarar a vida.
Ficaste-te pelos vinte e sete, tal como este dia que me marca como um espinho pungente que se atravessa na minha garganta. Houve muito por dizer, houve muito mais por partilhar. Pretendia aqui verbalizar ainda mais, mas não posso, não quero, não devo.
O acaso revelou-se neste estranho acidente, o teu signo, nome de trópico dado pela constelação na qual o Sol se embutiu no dia em que nasceu o solstício de Verão, possui o lúgubre rótulo da moléstia que te levou em definitivo para nenhures, para bem longe de mim. Porém, e tu sabes tão bem, compartilhas a minha realidade quotidiana pela eterna saudade que se engastou na minha consciência.
Há quatro anos… mano!

Sickness brought me this
Thought, in that scale of his:
Why should I be dismayed
Though flame had burned the whole
World, as it were a coal,
Now I have seen it weighed
Against a soul?

W.B. Yeats, “A Friend’s Illness”, Responsibilities and other poems, 1916

Ai, que giro!

Em Portugal, houve quem proclamasse a inexorabilidade da ascensão de uma geração rasca, constituída essencialmente por iletrados e analfabetos funcionais. E eu pergunto: para além dos fogachos marcadamente reduzidos e circunscritos da ínclita ou da de 70, o que somos nós desde 1143?
Hoje tudo é giro, imensamente giro, montes de giro
Ontem quando, auxiliado pelos movimentos maquinais do meu polegar direito cravado no botão “+/-”, saltava de canal em canal, dei por mim a ouvir do sósia do Roberto Leal sem sotaque: “Ai que giro o teu título!”
Tratava-se de uma entrevista realizada pelo célebre e decadente – e digo-o com pena – funcionário oxigenado da SIC à prosadora de alto gabarito – escreve das nove e meia da noite às duas da manhã – Fátima Lopes que, curiosamente, trabalha na mesma estação de televisão. É o chamado bacanal promocional endogâmico.
O tal título “giro” é «Amar depois de Amar-te». Confesso que, segundo os meus cânones estéticos, se trata de um mau gosto atroz. Contudo, não é uma regra rígida por mim estatuída na selecção de obras literárias para meu deleite, já que alguns dos livros que leio têm títulos dessa índole que, no entanto, se revelaram como obras magníficas. Apenas citando um exemplo, estou-me a recordar do fabuloso livro de Siri Hustvedt – mulher de Auster – «Aquilo que eu amava» (What I Loved). Depois leio a sinopse e as entranhas revoluteiam-se através dos seus famosos movimentos peristálticos perante a constatação da futilidade e da inenarrável fuga do pé para o chinelo.
De súbito lembrei-me daquela pequena obra-prima de Kasdan, protagonizada por Kevin Kline, «Amar-te-ei até te matar».
Finalmente, amainada a violência verbal e para rematar em beleza, foi o meu pé que fugiu para o chinelo – aliás, até já estava de pijama vestido e com o Banville na mão… e não, não é isso que pensais!
Ponto de ordem: bem, dizia eu, que depois da aprazível recordação da dupla Kasdan e Kline, inventei um título onde o pé chinelava num paroxismo da perfeição, que aqui apresento numa versão censurada pelo meu superego:
«Comer-te depois de me haveres comido».

segunda-feira, 26 de junho de 2006

Apresentação do n.º 9 da revista “aguasfurtadas” [divulgação]

A “aguasfurtadas”, revista de literatura, música e artes visuais acaba de lançar o seu número nove. Com textos de Inês Lourenço, Tiago Gomes, Rui Lage, Pedro Ribeiro, Marcelo Rizzi, Adrienne Rich, Virginia Woolf, Filipe Guerra, entre muitos outros, para além de trabalhos inéditos de vários fotógrafos e artistas plásticos, e ainda de um CD com obras de Alexandre Delgado, Ruben Andrade, Dimitris Andrikopoulos e do grupo de jazz Espécie de Trio.

Este número nove será apresentado no próximo dia 6 de Julho, a partir das 21h30, nos Espaços JUP (Rua Miguel Bombarda, 187), no Porto, com a realização de um espectáculo que incluirá as actuações dos projectos Mana Calórica e Las Tequillas. Haverá ainda outros motivos de interesse que estão a ser meticulosamente preparados pela equipa de coordenação da revista.

No país da inveja [Corrigido]

O Eduardo Pitta descreveu parte da sessão de entrega do merecidíssimo Grande Prémio de Romance e Novela da APE a Francisco José Viegas, que decorreu ontem na Gulbenkian. Começou e bem com a interrogação de uma amiga que o acompanhou «Tão poucos escritores. Isto é normal...?»
Eu, descaradamente, faço aqui um exercício de resposta, assaz singela e inteligível: «É!».
Vivemos no país da mediocridade institucionalizada, onde predominam o ressentimento e, sobretudo, a inveja.
«Longe de Manaus» é um excelente romance e foi, sem dúvida, o melhor romance português publicado em 2005 no conjunto daqueles que tive a oportunidade de ler.
Forte na narrativa, robusto na descrição dos personagens, congruente e com fio condutor e aprazivelmente bem escrito no nosso português e no português açucarado do Brasil.
Depois, a própria estrutura gramatical do romance. Tem parágrafos, transições do discurso directo para o indirecto perfeitamente identificáveis, vírgulas, pontos e vírgulas, etc. Confesso que já me cansam os romances de balbúrdia diacrítica e de pontuação, com a honrosa excepção de alguns, que até já citei neste blogue.
Voltando ao cerne da questão, atrevo-me a postular que, neste país, enquanto encararmos o trabalho meritório dos outros como uma afronta pessoal e/ou como uma forma encapotada de arrivismo, elaborado à custa de forças exógenas poderosas, jamais sairemos deste marasmo que caracteriza um sociedade de mentecaptos e terceiro-mundista. E, acreditem, sei bem do que falo, por experiência própria, já que laboro num mundo de desavergonhadas endogamias, de mesquinhezes e de interesseiríssimos, e onde se pode encontrar exemplos substanciais para caracterizar o paroxismo da inveja e da maledicência.

Uma vez mais, parabéns Francisco! Cá aguardo, ansiosamente, a deambulação chinesa* de Jaime Ramos.

*Correcção (28/Jun): Alertado pelo Hugo, afinal a deambulação do Sr. Inspector Jaime Ramos far-se-á por terras da Argentina e do Chile.

sábado, 24 de junho de 2006

Encerramento da Carta Aberta

De José Maria (de Moura) Eça (e Cunha) de Queiroz:

Meu caro e Nóbel (e vai assim para evitar a irritante palavra que tu insistes em agudizar, recorrendo às regras de acentuação num nome próprio estrangeiro…) companheiro das letras,

Eça de QueirozDecorridos seis anos resolvi responder-te. Aqui o Virgílio – meu companheiro de deambulações etéreas – é assinante do JL e não tardou a retomar as suas investidas munindo-se das habituais piadas – de um desagradável humor escarninho, diga-se – a propósito da republicação de uma dita
carta aberta – já antevejo, com alguma ansiedade, o dia em que, usando da minha diplomacia inata, terei de mexer uns cordelinhos para o enviar, em definitivo, para o Inferno com aquele seu italianito emproado que só fala em verso e numa tal de Beatriz (imagina que já escreveu para cima de cem volumes de uma obra que baptizou de Vita Caelestis).
Virgílio impeliu-me, sem o professar, ao exercício do direito de resposta à tua supostamente irrespondível carta. Porém, José Saramagodeixa-me dizer que, apesar dos teus exercícios literários niilistas – eu sei, fui violento –, há vida depois da morte, se bem que não te possa exibir à evidência a forma como ela se materializa. Não se trata de um segredo arcano ao qual jurámos fidelidade após a ascensão, porquanto as tuas limitações de ser corpóreo e mundano jamais te permitirão alcançar a gnose de tão alto empreendimento.
Antes de prosseguir com as questões que me inquietaram após a leitura do teu exercício literário, que, por certo, despertou em ti a soberba da erudição num país que julgas ser composto por pessoas de um olho só, dispondo tu de dois, gostaria que soubesses que li as recensões e os resumos de todas as tuas obras, prodigiosamente preparados pelo Arcanjo Gabriel. Confesso-te que tenho a vista cansada de ler parágrafos inteiros sem pontuação.
Voltando à tua missiva, há um conjunto de questões que gostaria de te colocar:
Em primeiro lugar, julgas-te o Segismundo – que ainda conheci por mundos terrenos enquanto fervoroso estudante da histeria, sob a asa protectora de Breuer –, um psicanalista que faz a apologia da dissecação da personalidade por um rebuscado uso da hermenêutica nos meus escritos?
Depois, falas-me num tom jocoso, não escondendo alguma presunção que te é tão típica, quando me tentas ensinar o que é um fax e qual é a sua utilidade. Julgas que não sei o que isso é? Pois fica sabendo que dos serafins ao Altíssimo, passando pelos catecúmenos recentemente admitidos e pelo selectivo P.E.N./Celestial, somos anjinhos cibernéticos certificados por S. Pedro desde que este abriu os Portões ao Bill. E, porventura, sabias que obtive do Arcanjo Rafael, Deus o guarde eternamente junto de si, a necessária autorização para negociar com o teu especial amigo terráqueo
Pacheco Pereira para que juntos empreendamos um esboço de um blogue de minha autoria, como medida terapêutica para as minhas atribulações etéreas?
Finalmente – e podes achar isto uma minudência – quando dizes a dado passo que, supostamente, foi a minha querida ama que me «lavou a caca dos cueiros», não poderias ter sido mais subtil? Se pretendias, com orgulho, usar um empolamento literário recorrendo à linguagem do povo, porque não utilizaste “merda”? “Caca” soa mal, é brejeiro e de uma grosseria estridulosa.

Não queria terminar sem te deixar com uma confidência e um conselho. A confidência resulta de um pensamento que venho amadurecendo ao longo destes seis anos: suponho que, no teu caso, já não te conseguimos endireitar simplesmente com um suave milagre, e muito menos com uma alargada estância em Cuba – das Caraíbas – junto do teu Fidel amigo. Quanto ao conselho, e suponho que a minha autoridade divinamente sancionada mo permite fazer, julgo que deverias orientar o teu afilhado, o Gonçalo, naquela sua, muito febril, compulsão publicista. Já ultrapassou as raias do exagero e, podes crer, já é motivo de copiosas risadas paradisíacas aqui no éden. No meu caso – e faço-te mais uma confissão, e sem cobrar – já não me ria tanto desde a publicação do Bilhete de Identidade daquela que, aí por baixo, recenseia, prefacia, estuda e edita escritos de minha autoria.

Sou, muito atentamente, teu despretensioso mestre,

José Maria

sexta-feira, 23 de junho de 2006

O Mar

Hoje saiu para o mercado português o romance de John Banville «O Mar» (The Sea), vencedor do Man Booker Prize for Fiction em 2005, após haver sido publicado, originalmente, no Reino Unido há 385 dias.
Banville, um dos meus autores de eleição, nasceu em 1945 na Irlanda, notabilizou-se com os livros de ficção sobre personagens históricas como Kepler e Newton, e, sobretudo, com o fabuloso «Doutor Copérnico» de 1976 (Dr Copernicus), publicado em Portugal pela Dom Quixote em 1992, com qual arrecadou o prestigiado
James Tait Black Memorial Prize for fiction.
Com «O Livro da Confissão» de 1989 (The Book of Evidence), publicado em Portugal pela Quetzal em 1990, foi finalista do
Man Booker Prize for Fiction (shortlist) e arrecadou o Guinness Peat Aviation Book Award.
Para além das obras acima referidas, destaco os excepcionais romances «Fantasmas» de 1993 (Ghosts) e «O Intocável» de 1997 (The Untouchable), ambos publicados em Portugal pela Dom Quixote em 1995 e 1998, respectivamente.
No entanto, o romance «Eclipse» de 2000 (Eclipse), publicado em Portugal pela Ulisseia em 2002, é para mim, atendendo aos meus critérios de avaliação tremendamente subjectivos, a obra-prima do autor. É um livro denso, descritivo, com poucos diálogos, com uma narrativa eminentemente negra e sombria, relatando a vida de um actor de teatro que subitamente se isola na sua infância, nas duras rememorações incrustadas nas paredes da casa na aldeia que o viu crescer, acrescentando-se um casamento, do qual nasceu uma filha, que passa pela curva descendente e onde predominam a incompreensão, o ressentimento, a dúvida e o desassossego do envelhecimento ensombrado pelo passado de uma vida não vivida.
Sem com isto expor em demasia a minha intimidade, posso confidenciar-vos que só no momento em que fechei o livro é que me apercebi que grossas lágrimas brotavam em catadupa dos meus olhos amplamente congestionados, e quem me conhece sabe que não sou de choro fácil.

Depois deste momento intimista, aqui fica a citação completa do livro agora publicado pela Asa – saindo como é óbvio da secção deste blogue dedicada ao Ritmo Editorial Português:

John Banville, O Mar, Asa, Junho de 2006, 166 pp. [Tradução de Teresa Curvelo] (The Sea, 2005).

quinta-feira, 22 de junho de 2006

These are the last things*

One by one they disappear and never come back. I can tell you of the ones I have seen, of the ones that are no more, but I doubt there will be time. It is all happening too fast now, and I cannot keep up.
I don’t expect you to understand. You have seen none of this, and even if you tried, you could not imagine it. These are the last things.

*she wrote.

Out here the Pink Steam is spreading out, praising the Sonic Youth.

quarta-feira, 21 de junho de 2006

Galeria dos Horrores

À pergunta em que obra se havia baseado o filme «West Side Story» de Robert Wise, a concorrente respondeu «O Padrinho», entre as hipóteses «Romeu e Julieta» e «Madame Butterfly».

Isto foi há pouco no concurso A Herança da
RTP1.

À volta pela iliteracia num país de ambição.

Attimo

«O tempo ajuda-nos a entender que o essencial são os instantes, não o durável.»
João Gonçalves, no
Portugal dos Pequeninos.


Pequena nota: Hoje, às 13 horas e 26 minutos, hora de Lisboa, quis o Sol atingir, no seu movimento aparente, a latitude de «23° 26’ 22’’ N» – o Trópico de Câncer – celebrando-se, assim, o dia mais longo do ano no hemisfério norte, Solstício de Verão.

Nossa Senhora de Caravaggio

Adágio

Hoje celebra-se o Dia Europeu da Música. Dado o actual estado de espírito, irritantemente mutável, instei-me à recordação de uns Adágios, provindos do meu sistema de som digital de 5.1 canais, que ao longo da minha vida amainaram a minha perene inquietação. Sons mágicos, de melodia e de harmonia, manuscritos numa partitura que reproduz um estado da alma:

Ária para a corda SolJohann Sebastian Bach (da Suite para Orquestra n.º 3, em Ré maior, BWV 1068) [arranjo de Tohru Takahashi; Wind Ensemble dirigido pelo Maestro Tohru Takahashi] – Carregar
aqui para ouvir (ficheiro mp3 – 5 Mb).

Para algo, assaz, diferente:
E as Variações de Goldberg!
Desafio, à laia de pedido de aula, ao
Luís: Ária Da Capo, Glenn Gould 1955 ou Glenn Gould 1981? E porquê?

terça-feira, 20 de junho de 2006

Galafura


©José Gama, São Leonardo da Galafura, (imagem respigada da
página pessoal do fotógrafo José Gama).

«Um dia esta porra acaba. Não há xisto que dê americano. E dou um tiro nos cornos… ai dou!», ribombava Joaquim Lopes Touriga, mais conhecido por Quim da Touriga, por entre lágrimas salgadas, que corriam num dilúvio pelos grossos socalcos do seu rosto, esparramando-se na terra inculta. O Douro ao fundo amarelo, verde, cor de céu, parado, sem vida, sem alma, por certo formado pelas excrescências salinas que brotavam das faces dos miseráveis que dele já viveram e sustentaram a numerosa família a massa com feijão, pedaços –poucos – de carne de porco ressequida e couve galega acabada de colher na horta mantida à noitinha, quando o sol já se despedia, expelindo uma brisa gelada, mergulhando numa lubricidade esfusiante nos altos picos do Marão.
Assim estava o Quim da Touriga, todos os dias cumprindo o seu ritual dilacerante, no meio daqueles socalcos desertos, recessos, queimados pelo cartel que no início do ano estipulava, de forma livre como um condenado, o preço dos 550 litros que haviam de matar a fome àquelas bocas sujas de mosto e de barriga inchada pela fermentação do bago... no limiar da indigência.
Subiu à Galafura, incrustou os joelhos nos degraus da ermida, persignou-se e rezou a São Leonardo para que este intercedesse junto do Altíssimo, livrando de mácula a família que o esperava. Broa de milho partida à navalha, no tampo esconso de uma mesa, e uma mísera sardinha de conserva encaixada nas duas metades.
Remirou aquela massa caudalosa que serpenteava, outrora com esperança, provento da batalha diária. Na mão já não há o sacho, fiel amigo das longas jornas da lavoura. Foi abandonado, resvalando pela encosta num ruído metálico anunciando a despedida. Touriga segurava agora a Savage preta, destramente lubrificada com óleo de armeiro, e reluzia… faíscas bruxuleantes reverberando a sonância dos raios de Ouro, cuja terra dera nome ao rio – ou seria o contrário?
Era tão pesada, tão dolorosamente pesada, como o fardo que se anichava no recanto obscuro da sua consciência. Já vira a morte de frente pintada nos crânios do Zé Cerceal, do Nelo Roriz e do Quim Zé do Rabigato. Rostos plúmbeos para sempre arrancados à vida.
Os melros rastejantes de bico amarelo, véus negros de carvão esvoaçantes, adejando numa coreografia aprendida que espalha a boa nova ao irmão corvo: solta o teu trinado!
O azulejo gravado da ermida por letras de Torga exibe, agora, o estigma do sangue derramado pelo desespero da extrema miséria.

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«À proa dum navio de penedos,
A navegar num doce mar de mosto,
Capitão no seu posto
De comando,
S. Leonardo vai sulcando
As ondas
Da eternidade,
Sem pressa de chegar ao seu destino.
Ancorado e feliz no cais humano,
É num antecipado desengano
Que ruma em direcção ao cais divino.

Lá não terá socalcos
Nem vinhedos
Na menina dos olhos deslumbrados;
Doiros desaguados
Serão charcos de luz
Envelhecida;
Rasos, todos os montes
Deixarão prolongar os horizontes
Até onde se extinga a cor da vida.

Por isso, é devagar que se aproxima
Da bem-aventurança.
É lentamente que o rabelo avança
Debaixo dos seus pés de marinheiro.
E cada hora a mais que gasta no caminho
É um sorvo a mais de cheiro
A terra e a rosmaninho!
»

Miguel Torga, “São Leonardo da Galafura”, Diário IX, 1964
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Dedicado às gentes laboriosas do Douro que, trabalhando de sol a sol, produzem a nossa mais estimável marca no mundo, cujos proventos retirados do Paiz Vinhateiro já não dão para se sustentarem no limiar da sobrevivência. Acorde, Sr. Prof. Doutor Aníbal Cavaco Silva, Presidente da República Portuguesa! O Douro está a morrer!

Minguante

Ontem uma agitada insónia deixou-me – qual Malcolm McDowell a assimilar de grampos fixos nas pálpebras a nauseante violência – de olhos doridos, sem veia criativa – se é que alguma vez pulsou –, e imagine-se sem pachorra para ler os livros que recentemente havia encetado. Estou seguro de que a culpa é do João que me contagiou com as suas insónias.
Indolentemente estendido no meu sofá, de corpo alquebrado e de cabeça fervilhante, deixei-me ficar pela
SIC-Notícias e assisti a esta sucessão curiosa entremeada por noticiários repetitivos: uma reportagem francesa sobre a eutanásia; notícias; O Dia Seguinte e mundial e Scolari, Caravaggio – a Senhora de –, e o inefável Dias Ferreira a defender até ao absurdo Luiz Felipe, chegando a afirmar que o estágio em Évora – com temperaturas que rondaram os 40 ºC – foi premeditado, uma vez que o devoto caravaggiano anteviu as temperaturas anormalmente altas para a Alemanha com mais de um mês de antecedência, nem os Monty Python me fariam rir tanto àquela hora da madrugada; notícias; finalmente aquele pindérico programa – em repetição – O Eixo do Mal, onde a inefável Clara “O2” Ferreira Alves discorreu sobre a indizível quantidade de escritores em Portugal e a voracidade publicadora das editoras que chega ao livro a cada duas horas – parecia o Arcebispo de Braga da moral da diligência editorial.

Insónia à parte, é em parte de
Insónia que quero falar. E como algumas das minhas letradas referências na blogosfera acabaram de lançar um nova publicação literária, há que forçosamente dar a notícia. Assim, congratulo-me por pessoas que leio frequentemente terem ousado publicar uma revista chamada Minguante, que se define «como uma revista de micro-narrativas», na qual «textos com mais de 200 palavras não serão considerados», desafiando os interessados a participar nesse projecto comum.
Assim, aqui ficam os meus Parabéns e votos das maiores felicidades aos editores
Henrique Fialho, Fernando Gomes e Luís Ene – de quem ainda não conhecia o blogue –, à Margarida Delgado pelo excelente grafismo, aos restantes insones participantes, ao Miguel Cardina, ao Rui Manuel Amaral, e a toda a equipa que delineou e construiu esta publicação bimestral ou apenas participou escrevendo.

segunda-feira, 19 de junho de 2006

Chico

A Fátima lembrou e bem. Chico completa hoje 62 anos, simplesmente a doce e sábia idade do meu pai.
Chico, Tom e Elis acompanharam o meu crescimento, mesmo antes de João Gilberto. Numa altura em que os rótulos a mim nada me diziam. MPB ou Bossanova? Para mim era igual. Era o Brasil, o incomensurável Portugal no outro lado do Atlântico, como um espelho de hemisfério invertido, por isso alegre, num eterno forró; onde as palavras de Camões saem abertas, adocicadas e desafectadas. O mar, o mar… mais o calor que emana daquelas vozes que, por certo, numa lógica osmótica transformou aquela natureza.
Em jeito de homenagem ao autor e precursor do perdidos na tradução que se materializou em Budapeste e da rebaptizada, desde Melbourne, Cohna & Casta Agência Cultural, deixo aqui as letras que o seu punho escreveu. A minha preferida, idos anos de 1981, tinha eu nove:

Amo tanto e de tanto amar
Acho que ela é bonita
Tem um olho sempre a boiar
E outro que agita

Tem um olho que não está
Meus olhares evita
E outro olho a me arregalar
Sua pepita

A metade do seu olhar
Está chamando pra luta, aflita
E metade quer madrugar
Na bodeguita

Se seus olhos eu for cantar
Um seu olho me atura
E outro olho vai desmanchar
Toda a pintura

Ela pode rodopiar
E mudar de figura
A paloma do seu mirar
Virar miúra

É na soma do seu olhar
Que eu vou me conhecer inteiro
Se nasci pra enfrentar o mar
Ou faroleiro

Amo tanto e de tanto amar
Acho que ela acredita
Tem um olho a pestanejar
E outro me fita

Suas pernas vão me enroscar
Num balé esquisito
Seus dois olhos vão se encontrar
No infinito

Amo tanto e de tanto amar
Em Manágua temos um chico
Já pensamos em nos casar
Em Porto Rico

Chico Buarque, Tanto Amar (Almanaque, 1981)

Os despojos da entrevista

Sugestão: dois artigos, em dois blogues, escritos por duas das minhas mais estimadas almas desassossegadas nesta blogosfera, que resultaram de uma entrevista concedida, ontem na 2:, por Vasco Pulido Valente:

  • «Vasco Pulido Valente na 2:», de Henrique Fialho no Insónia, sobre as costumeiras atoardas intelectuais que se vão despejando do alto da torre de marfim que sustenta a presumida elite cultural lusa.

Justas referências cum laude #5

Para ser sincero tenho uma especial predilecção pelos blogues que, fazendo jus ao seu conceito primordial, nos transmitem de uma forma intimista as atribulações, as alegrias, os desencantamentos, as inquietações ou as mágoas do dia-a-dia dos seus autores. Não se confunda isto com uma eventual manifestação de minha parte pela desvergonha ou pela sordícia de um voyeurismo primário da vida de outrem. Pelo contrário, é a simples admiração por aqueles que escrevem sobre os episódios supostamente banais do quotidiano de uma maneira que, não profanando o imo da sua privacidade, nos enleiam pela destreza da escrita e pela honestidade intelectual.
Muitos exemplos poderiam ser dados recorrendo aos mestres contemporâneos da literatura de ficção: partem do episódio, aparentemente banal, da vida quotidiana para uma efabulação de tom quase divinatório, como um decalque da vulgarizada vida real.
E para que serviu isto?
Só para aconselhar a leitura do texto “Tem calma, Sérgio” do Sérgio Lavos no seu excepcional
Auto-Retrato.

Cogumelos Mágicos

«One pill makes you larger
And one pill makes you small
And the ones that mother gives you
Don't do anything at all
Go ask Alice
When she's ten feet tall
»

Aconteceu-me enquanto o folheava. A cada página sorvida, efeitos de um cogumelo mágico iam-me consumindo a razão, mergulhando num torpor alucinogénio de euforia incontida, o Coelho Branco dos Jefferson Airplane toldava-me o bom senso que de mim poderia restar numa cadência de ritmos cada vez mais forte e visões, fogachos de luzes fosforescentes numa intermitência nauseante – Fincher manipulando O Jogo. Depois, Alice e os devaneios corporizados no coelho… um medo irrefreável pela suposta ferocidade do bicho, quiçá guardando ciosamente a caverna e abocanhado o infeliz temerário curioso pelos mistérios daquelas entranhas húmidas e viscosas que o odor exalado pelas feromonas fazia adivinhar. Era Python, Monty Python e a demanda do Santo Graal.

Pára, André! [aprendido com o verdadeiro jogador de futebol que fala em si na 3.ª pessoa]

John Updike - BrasilAh, a tetralogia do Coelho, Harry "Rabbit" Angstrom! Updike?
O romance de Tristão e Isolda, escrito por Joseph Bédier reconstituído a partir de textos medievais, é a base do romance, ou como afirma Updike no posfácio foi “o tom e a situação básica” (p. 254). No entanto, Updike confessa que retirou a “coragem e o colorido local da verdadeira ficção brasileira”, citando, por exemplo, Machado de Assis, Amado, Lispector, Rubem Fonseca.
Tal como em outras obras de Updike, damos por nós a questionar se o autor não estaria sob a influência de alucinogénios quando redigiu determinadas partes do livro. Há desvios de um cunho intensamente imaginoso e espectral que parecem prejudicar o normal curso narrativo, com algumas passagens muitas vezes duradouras, que só mais tarde percebemos que no fundo são o elo de ligação às prodigiosas iterações narrativas.
Falo do romance «Brasil» editado pela primeira vez em Portugal, ano de 2006, pela editora Civilização.
São vinte e dois anos que retratam um Brasil dos extremos, do rico e do pobre, do branco e do preto, do interior e do litoral, da extrema miséria das favelas e dos bairros luxuosos que coabitam a paredes meias na Cidade Maravilhosa, da opulência de Brasília à devastação das pessoas e das culturas do Mato Grosso à Amazónia.
É a história de um romance inaudito, que sobrevive às mais grotescas contrariedades pela inevitabilidade e pela solidez de um amor infinito, onde até a morte é encarada como um mero instrumento para a sua perpetuação.

A ler

Referência completa:
John Updike, Brasil, Civilização, Maio de 2006, 254 pp. [Tradução de Carmo Romão] (Brazil, 1994).

domingo, 18 de junho de 2006

Dualismo

Não és bom, nem és mau: és triste e humano...
Vives ansiando, em maldições e preces,
Como se, a arder, no coração tivesses
O tumulto e o clamor de um largo oceano.

Pobre, no bem como no mal, padeces;
E, rolando num vórtice vesano,
Oscilas entre a crença e o desengano,
Entre esperanças e desinteresses.

Capaz de horrores e de ações sublimes,
Não ficas das virtudes satisfeito,
Nem te arrependes, infeliz, dos crimes:

E, no perpétuo ideal que te devora,
Residem juntamente no teu peito
Um demônio que ruge e um deus que chora.

Olavo Bilac, «Dualismo», Tarde, 1918

Uma das nossas proezas

Tem-se ouvido até à náusea que dos fracos não reza a História. Porém, por mais repetitiva e enjoativa que se revele essa asserção trata-se da verdade nua e crua que matiza em tons escarlate a nossa civilização, porque os factos escondidos mais sórdidos são trazidos à luz do dia por um lençol freático que se cansou do agrilhoamento infligido pelas paredes rochosas, que acabam por confirmar a história dos vencedores ao difundir a verdade dos vencidos.
Sobre os escombros dos vencidos vamo-nos coroando de honras e glórias, transmitidas de geração em geração, à laia de uma purga tão habilidosa como lúgubre e sombria.
Esta é a purga histórica que fez, por exemplo, os espanhóis orgulharem-se de Cortéz e Pizarro, os ingleses de Sir Francis Drake, os franceses de Napoleão Bonaparte e nós do nosso inefável, coveiro-mor do reino, D. Manuel I, o venturoso.
É isto a História? Será a vil manipuladora que instrumentalizou o passar dos séculos injectando cargas amnésicas num povo ufano da sua ancestralidade?
Hoje creio que não, apesar da evidente manipulação dos democratizados instrumentos de vivificação da memória colectiva.

Tudo isto para anunciar a publicação do livro «Betraying Spinoza: The Renegade Jew Who Gave Us Modernity» da filósofa, romancista, ensaísta e professora universitária em Harvard, Rebecca Goldstein.
Da
recensão de Harold Bloom no New York Times retirei o seguinte parágrafo (recordando-me do artigo de Ferreira Fernandes aquando da lembrança dos 500 anos do Pogrom de Lisboa em Abril passado):
«Spinoza's family were Portuguese Marranos, enforced Jewish converts to Roman Catholicism who returned to Judaism when Calvinist Holland permitted it. Portugal, like Spain, destroyed its prosperity and much of its culture by expelling Jews and Moors, or by converting them into second-class New Christians under perpetual threat of Christian acts of the faith, public burnings that served both as spiritual purification and popular entertainment. Though he evaded Christianity, Spinoza gladly absorbed many of its slanders against Judaism. I am justly angry when he employs "Pharisee" as a term of abuse, in the manner of the New Testament: what did he think of Hillel, a better human being even than himself? And though Spinoza argued against miracles, and did not accept the divinity of Jesus Christ, he praised Jesus as the greatest of the prophets, surpassing Moses.»

Afinal, está-nos no sangue!

sábado, 17 de junho de 2006

6 meses e alguns livros depois

Este blogue não chegou à altura de comemorações ou de felicitações, mas é inegável que meio ano de blogue em pé – salvo seja! – é mais do que cheguei a imaginar quando o iniciei a 17 de Dezembro do ano passado.
De muito aqui se falou, em muito este espaço me ajudou.
Não o vou negar, este blogue já é uma parte importante da minha vida, embora seja por vezes assolado pela angústia do tempo despendido na sua construção diária.
Desfrutei do real privilégio de dialogar, de cara tapada por um ecrã LCD – torna mais fácil o diálogo neste mundo insensibilizado pela inexorabilidade da luta quotidiana –, com pessoas fascinantes que me escreveram, que aqui comentaram e que nos seus blogues aqui se ligaram.
Passei por bons e memoráveis momentos, porém, em algumas fases destes longos seis meses, passei por momentos de vida difíceis, atribulados e de algum afogo que indelevelmente se transmutaram nos textos aqui postados. No entanto, foi deveras gratificante verificar que, desses mais ou menos longos períodos de angústia e na minha eterna e pueril credulidade da amizade desinteressada, fiquei a conhecer pessoas, algumas distando fisicamente a mais de trezentos quilómetros, infinitamente boas cujas qualidades já eram demonstradas nos textos que publicavam nos seus respectivos blogues. Não os irei aqui nomear, porque esses de quem falo neste momento sabem que é a eles que me refiro; só lhes queria dar o meu testemunho do seu inestimável contributo para me proporcionarem uma vida melhor. Este é, na realidade, o verdadeiro poder das letras.

Lamechices à parte, à laia de uma putativa comemoração – já que só me sentirei realmente congratulado se conseguir dobrar o dia 17 de Dezembro de 2006 – deixo aqui os livros que me proporcionaram momentos de verdadeiro deleite literário.
O critério seguido nada tem de científico e nem resultou de uma análise das capacidades e qualidade literárias dos autores, dos tradutores e das editoras, porque a minha formação académica e a minha carreira profissional nada têm que ver com o fabuloso mundo das letras. Sou apenas um amador que amiudadamente divaga sobre livros porque estes preenchem os meus momentos de ócio ou aqueles em que se me assola uma angústia paralisante.
Logo, peço perdão a todos aqueles que me lêem, cujas profissões ou actividades de alguma forma se relacionam com as letras, pelos eventuais crimes literários aqui cometidos. Sou apenas um leigo amante da literatura.

Os Livros – critério de selecção e escolhas:

  1. Todos e apenas os editados em Portugal no ano de 2006 que tive o prazer de ler;
  2. A classificação é qualitativa, embora exista uma quantificação de base: Obra-prima (6 estrelas), Muito Bom (5), Bom (4), A Ler (3), Medíocre (2), Péssimo (1);
  3. A ordem dos livros dentro de cada categoria segue o critério de ordenação onomástica português (autor) e nada tem que ver com uma avaliação intra-grupo;
  4. Apenas serão aqui revelados livros que se encaixaram nas 4 primeiras categorias;
  5. De entre todos os livros que tive a oportunidade de ler desde o primeiro dia deste ano, apenas 23 obedeciam ao primeiro critério (editados em 2006);
  6. Dos 23 seleccionados, a esmagadora maioria são obras de ficção (o meu campo dilecto), se bem que deles constem por exemplo ensaios, críticas e crónicas;
  7. Do conjunto de 23 livros, 16 cumprem o critério 4, logo apenas 16 livros irão ser aqui revelados.


A lista


Obra-prima

  • Convite para uma decapitação, de Vladimir Nabokov, Assírio & Alvim

Muito Bom

  • A pele fria, de Albert Sánchez Piñol, Teorema
  • A acidental, de Ali Smith, Bico de Pena
  • A Sinfonia Pastoral, de André Gide, Ambar
  • As loucuras de Brooklyn, de Paul Auster, Asa

Bom

  • Época de migração para norte, de Al-Tayyeb Salih, Cavalo de Ferro
  • O mar de Madrid, de João de Melo, Dom Quixote
  • Ao meu filho, de Marilynne Robinson, Difel
  • Mulher em branco, de Rodrigo Guedes de Carvalho, Dom Quixote
  • O remorso de Baltazar Serapião, valter hugo mãe, QuidNovi
  • História Natural da Destruição, W.G. Sebald, Teorema

A Ler

  • Impressão indelével, de Camilo Castelo Branco, Guerra & Paz
  • Kafka à beira-mar, de Haruki Murakami, Casa das Letras
  • Todos os dias, Jorge Reis-Sá, Dom Quixote
  • Pobre e mal agradecido, de Rui Tavares, Tinta da China
  • Shalimar, o Palhaço, de Salman Rushdie, Dom Quixote

Nota: a próxima lista só será revelada para o final do ano ou para o início de 2007. É claro, se ainda por cá andar!

sexta-feira, 16 de junho de 2006

Justas referências cum laude #4

Via esta recomendação do RAF tomei conhecimento deste texto de Pacheco Pereira incluído no jornal Público e agora disponibilizado por JPP no Abrupto.
Apesar de em muitos assuntos discordar de José Pacheco Pereira, tenho de reconhecer a qualidade do excelente artigo «Blogues: a apoteose do presente», que se dedica ao estudo do fenómeno da inexorável ascensão da blogosfera, que alguns pretendem negar, e das suas forma e substância que, de modo quase imperceptível, estão a transformar o panorama comunicacional à escala mundial.

Sugestão para JPP (dada a revelação do tema do seu próximo artigo): ver este blogue de Greg Perry, que é mantido na forma do diário (o famoso Journal) de Henry David Thoreau.

Caridade [Adenda]

Desde o dia em que solta o primeiro gorjeio à saída do útero materno até ao último estertor antes da misteriosa – e definitiva? – interrupção das ondas ritmadas que reflectem o pulsar da vida, o ser humano é um todo complexo de emanações que resultam de um processo de aprendizagem da tentativa e do erro, e da doutrina que aqueles que nos rodeiam zelosamente querem perpetuar naquele que lhes é próximo.
Como já tive a oportunidade de referir neste espaço de catarse e de expiação, hoje sou um ser descrente que caminha inexoravelmente para o cepticismo mais radical, porque entendo a vida como um sofrimento perene cortado por ocasionais e efémeros momentos de alegria e/ou de exultação. Todavia, não poderia aqui negar que o meu processo de desenvolvimento ontogenético, nas suas etapas preliminares, foi fortemente circunscrito por uma educação de forte índole religiosa – sem ser fundamentalista ou de uma devoção extrema – que os meus famíiliares mais próximos me quiseram incutir, porque, na sua fé inabalável, haviam postulado como a melhor solução para o fortalecimento do meu ser e da minha condição humana. Não os recrimino por isso, tal como agora não sou recriminado, embora aconselhado, pelo facto de não acreditar com as mesmas força e convicção na Divina Providência que um dia – sabes lá quando – fará justiça em nosso nome.
Assim, lembro-me – e apenas decorreram cerca de nove anos – da 2.ª leitura da celebração religiosa do meu casamento, que eu e a minha mulher havíamos escolhido apenas uma semana antes, quando a ouvíramos na eucaristia que precedeu o casamento de dois eternos amigos – os quais considero hoje como irmãos. Falo como é óbvio do Cântico do Amor (Capítulo13 da 1.ª Epístola de S. Paulo aos Coríntios), onde outrora, nesse mesmo espaço, existia a palavra “caridade”.

O amor e a caridade são, hoje em dia, conceitos perfeitamente distintos no seu campo semântico. Todavia brotam da mesma raiz que assenta na exteriorização pelas palavras e pelos actos dos nossos afectos, seja qual for a sua natureza.
O curtíssimo romance de André Gide «A Sinfonia Pastoral» trata dessa dualidade ou, para ser mais exacto, da ténue fronteira entre caridade e amor.
Publicado pela primeira vez em 1919, este romance curto – como prefiro chamar-lhe, em oposição a “novela” –, de escassas cem páginas, mostra-nos essa dualidade através do processo de aprendizagem de uma rapariga cega que até aos 15 anos vivera com a sua mãe, que entretanto faleceu, revelando-se as condições de miséria e abandono a que estivera votada, vivendo como um animal enjaulado longe do mundo e da mácula do século.
O nome da obra provém dos primeiros passos desse processo, conduzido por um Pastor Protestante numa vila da Suíça, casado e pai de 5 filhos, que havendo adoptado a rapariga, a quem chamou Gertrude, procura obstinadamente ensinar a falar, a ler através do tacto, as regras mais basilares de comportamento social e os princípios espirituais da fé cristã. Porém, quando Gertrude não entende o que é a cor e todo o seu espectro de tons escuros e claros, o Pastor leva-a a um concerto onde se interpretava A Sinfonia Pastoral de Beethoven, para lhe explicar através dos diferentes sons e das suas tonalidades, provindos dos diferentes tipos de instrumentos, a paleta iridescente que pinta o mundo à sua volta.
Por outro lado, nesta obra, discute-se a fé, a assunção e a liturgia do cristianismo por Protestantes e Católicos, efabuladas nas lições de Cristo e de Paulo. Fala do ressentimento, da indiferença e do egoísmo tão próprios e imanentes do ser humano.
Não me atrevo a contar muito mais, sob pena de prejudicar a sua leitura, todavia tenho que referir que esta pequena maravilha literária é uma obra negra, agreste e soturna, porém conduz-nos à dúvida e apela ao duro escrutínio da nossa conduta que, de forma ufana e na estridência do dia-a-dia, não ousamos sequer pensar em executar.
Sublime!

Referência completa:
André Gide, A Sinfonia Pastoral, Ambar, Janeiro de 2006, 101 pp. [Tradução de Carlos Correia Monteiro de Oliveira] (La Symphonie Pastorale, 1919).

Adenda: ler este excerto sobre o romance retirado da biografia de André Gide escrita por George D. Painter.

Mundos do nosso mundo

O romance «Época de migração para norte» do sudanês Al-Tayyeb Salih foi publicado pela primeira vez em Árabe, corria o ano de 1966, numa revista libanesa chamada Hiwar – que significa “Diálogo”. Todavia, a clique política sudanesa apressou-se, desde logo, a condenar o romance – tanto a facção islamita como a facção comunista –, apesar de haver sido banido apenas 25 anos após a sua publicação. Todavia, o acto de repúdio teve repercussões imediatas nas restantes teocracias do mundo árabe que levou, por exemplo, ao seu banimento do Egipto durante 30 anos.
Foi traduzido para russo e para hebraico, tendo-se transformado rapidamente num bestseller em Israel.
Em 1969 a obra foi traduzida para inglês e publicada pela Heinemann, a qual foi considerada pela crítica como um livro acessório. Em 1972 foi traduzida para Francês e publicado em França, onde foi bem acolhido pela crítica, convertendo-se, rapidamente, num sucesso de vendas.
Neste romance, Tayyeb Salih relata o choque civilizacional entre as culturas ocidentais e a cultura árabe. Fala-nos de dois homens – o narrador e o personagem principal, Mustafá Saíd – com destinos diferentes, porém com um tronco comum educacional no Sudão profundo que se digladia com a posterior formação fortemente europeísta, resultante da sua emigração para norte – aqui como símbolo do mundo civilizado – mais concretamente para Inglaterra.
Depois de uma tenebrosa e tumultuosa permanência em Inglaterra, Mustafá regressa ao Sudão e instala-se na aldeia do narrador, onde anos mais tarde se conhecem, após o regresso deste último à sua terra Natal.
Aqui começa a história, com as tenebrosas confissões de Mustafá sobre a sua vida em Londres, pondo em confronto dois modelos civilizacionais profundamente antagónicos – um de raiz judaico-cristã e o outro sob o domínio do islamismo – no que diz respeito a assuntos tão putativamente triviais, como o sexo, o matrimónio, o papel das mulheres na sociedade e a forma de encarar a morte. Por outro lado, põe a nu a enorme dicotomia do Sudão rural subdesenvolvido e do Sudão de Cartum dominado por uma classe política corrupta e desinteressada do estado de miséria em que se encontram os seus concidadãos, sistema político esse que ia proliferando pelo terceiro mundo.
A atracção do mundo ocidental pela desconhecida cultura oriental e as crueza e perversidade de um Sudão cuja vida é orientada pelos preceitos islâmicos mais ortodoxos, são duas realidades que se entrecruzam mas não se encaixam, cujo corolário natural e impassivelmente aceite é a violência.
Por tudo isto e apesar de já ter sido publicado há 40 anos, no momento em que as tensões regionais culminaram com a eclosão da Guerra dos Seis Dias, este romance revela uma pertinência e uma actualidade que o convertem de leitura quase obrigatória para se entender parte do fundamento das atrocidades que hoje em dia são cometidas em nome da fé.
Época de migração para norte é um romance de fácil leitura e com uma trama deveras entusiasmante.

Referência completa:
Al-Tayyeb Salih, Época de migração para norte, Cavalo de Ferro, Maio de 2006, 163 pp. [Tradução do árabe por Raquel Carapinha] (dispenso-me a colocar aqui o título original da obra em árabe, publicada em 1966)

(Ex)citações

Amanhã (hoje), se tempo sobejar, aqui postarei a minha opinião sobre dois livros que acabei de ler e sobre os quais deveria, talvez de uma forma inopinada, demonstrar o estado de contentamento percebido com a sua leitura.

Assim, aqui ficam as referências:

  • «A Sinfonia Pastoral», de André Gide, Ambar, Janeiro de 2006;
  • «Época de migração para norte», de Al-Tayyeb Salih, Cavalo de Ferro, Maio de 2006.

Deixo os adjectivos para depois.

quinta-feira, 15 de junho de 2006

That’s Life!

O Fim da Rua - A Linha da Beleza
«That's life (that's life), that's what all the people say / You're ridin' high in April, shot down in May» já cantava e encantava Frank Sinatra.

Ontem a
2: emitiu o último episódio de «A Linha da Beleza», minissérie produzida pela BBC e adaptada do romance homónimo, vencedor do Booker Prize de 2004, do escritor Alan Hollinghurst.
Nick chegou ao Fim da Rua e abandona, sem honra nem glória, o 29 de Kensington Park Gardens, após quatro anos de aparente integração de um plebeu na impenetrável e libertina aristocracia londrina.
Os escândalos da corrupção e do crime económico e financeiro, e a moralmente condenável, quando evidenciada, transgressão sexual na forma de adultério, são expiadas pelo elo mais fraco da contrafeita cadeia de relacionamentos sociais da classe política e da alta sociedade britânicas. Nick Guest, jovem diletante de origens modestas, aluno brilhante e estudioso da estética em Henry James, cedo se deixa enredar na paralisante ociosidade da alta sociedade, onde a venalidade, o consumo de álcool em excesso e de drogas, o tráfico de influências e os comportamentos sexuais de risco são práticas comuns, porém ocultadas ao mundo exterior a esse círculo restrito. O primeiro e último número da Ogee – onde até aparece um artigo de Anthony Burgess – é disso um exemplo. A ostentação da beleza que mais não é que uma garbosa fachada que encobre um mundo sombrio feito de vaidade e inveja, de ostentação e depravação, de desamor e indignidade.
Mrs. T continua no poder, Nick regressa a Barwick.

The End

Jackpot literário fica na Irlanda

Pela primeira vez na, ainda curta, história do International IMPAC Dublin Literary Award venceu um escritor irlandês.
O maior prémio do mundo, em termos pecuniários, para uma só obra de ficção literária foi atribuído a Colm Tóibín pelo seu romance «The Master», que já havia vencido em França o Prix du Meilleur Livre Etranger – Roman 2005 e nos Estados Unidos o Los Angeles Times Book Prize – Fiction 2004.
O romance «The Master» baseia-se na vida e na obra do Mestre – e mago – anglo-americano das letras Henry James.
O romance decorre entre Janeiro 1895 e Outubro de 1899, iniciando-se com a história do fracasso na estreia em Londres de uma peça de teatro escrita e encenada por James e os seus pontos de viragem posteriores, em concomitância com a revelação de algumas atribulações na sua vida pessoal.
Para ficar a saber mais, apesar do aviso de spoiler, ler
este texto.

Veja-se o que diz a crítica, através destas 4 recensões:
(1)
John Updike na revista The New Yorker;
(2)
Janet Maslin e (3) Daniel Mendelsohn no jornal The New York Times;
(4)
Richard Canning no jornal britânico The Independent.

Nota para os marialvas mais susceptíveis*: Tal como Hollinghurst, Tóibín recria Henry James e os seus conceitos estéticos, embora de forma mais frontal e potencialmente mais chocante, no contexto e na envolvente da homossexualidade – apesar das mágoas do Autor, Autor inglês David Lodge.

*Sempre que assento esta frase, lembro-me, infalivelmente, do papel de Chris Cooper no excepcional Beleza Americana de Sam Mendes.

quarta-feira, 14 de junho de 2006

Antes do Corpus Christi…

…aqui fica mais uma actualização da minha lista de blogues.
Desta feita, refiro 10 blogues de qualidade que deveriam há muito ser parte integrante deste blogue:

A todos saudações blogosféricas e boas divagações.

Desvarios na Feira

A 76.ª edição da Feira do Livro do Porto terminou no Domingo passado. A de Lisboa terminou ontem ao que parece sem que houvesse vivalma que se dignasse a ouvir o angustiante silvar do seu último estertor.
Não sei como se finou aqui no Porto, embora não advinhe algo de diferente. No entanto posso testemunhar aquilo que presenciei nas duas vezes que me desloquei ao plastificado Pavilhão Rosa Mota – por falar nisso o nosso Rui, Rio de contentamento, parece que a quer levar de novo aos Aliados; ah, que austero e espartano este rapaz me saiu por querer devolver a chuva aos letradíssimos clientes portuenses!
A 1.ª peregrinação (2.º dia da Feira)
Cheguei às três da tarde aos Jardins do Palácio debaixo de um calor abrasador. Tomei o meu café na cafetaria da Biblioteca Almeida Garrett e fiquei surpreendido por verificar que já havia uma pequena multidão, que se acotovelava na luta por uma sombra, à espera que as nobres e luxuosas portas de vinil se abrissem de par em par.
Às dezasseis horas em ponto um zeloso – e decerto letrado – funcionário encavalita-se numa cadeira do mais nobre pinho e desata os luxuriantes fios de nylon, que quem sabe haviam copulado num frenesim nocturno com as feminis aldrabas debruadas a latão da Argentina.
Por fim, às dezasseis horas e quinze minutos, lá pisei a passadeira vermelha que me conduzia àqueles espectrais volumes de celulose cravados de caracteres da mais fina arte, que me vão dando novos mundos ao meu mundo – ou como diz o João, citando Malraux, a apreciar a ideia do livro enquanto amigo certo e silencioso.
De repente vi-me na feira de Espinho a comprar camisas Sacoor e Ralph Lauren originais, made in Amares ou Nogueira da Regedoura, tal era a anarquia e a displicência na arrumação das bancas. Hiperventilei, desesperei, endemoninhei-me e finalmente saí apenas com menos 20 euros e com dois livros adquiridos: um na Caminho, o outro na Difel.
Antes desse desenlace fiz a pergunta da praxe na banca na qual, teimosa e petulantemente, costumo marcar Presença há alguns anos para cá, para ver se obtenho a mesma resposta: «Tem o X e o Y do P.A.?», pergunto eu; «Deixe-me ver aqui no computador… hum… Pois aqui não temos, mas se pedir numa livraria para nos encomendar, eles pedem-no e o senhor já os pode comprar.»
Termino sempre com esta frase de mim para comigo, à laia do longínquo Urtigão: «Cuméquié!»
A editora edita livros, que despacha para livraria que vende livros, que os troca por dinheiro com o leitor. Assim, a editora que edita, é mais papista que o Papa, nega-se à venda directa e mete, à boa maneira portuguesa, um intermediário para atrapalhar, para este lhe dizer, neste caso, que o livro está esgotado na editora, coisa que a editora que os edita não soube dizer ao leitor que, com o seu dinheiro, permite a sobrevivência da editora.
'Da-se!

Nota: o 2.º episódio continua num dia destes.
Cenas do próximo episódio: rios de dinheiro, seis sacos e vinte livros. Agradecimentos à Gradiva e à Dom Quixote.

terça-feira, 13 de junho de 2006

De se lhe cortar a cabeça

Se gosta de Dostoiévski, Kafka, Vian, Bradbury e Huxley, este romance é absolutamente…
[pausa reflectiva]
Ponto de Ordem
Acabei de ler um livro que se intitula «Convite para uma decapitação». Uma sensação de puro contentamento, paradoxalmente interposta por um sentimento de pena pelo dobrar da última folha, assolou-se de mim. Contudo, não me sentiria bem se não deixasse aqui neste lugar, quase em forma de solilóquio – dada a reduzida audiência –, o meu testemunho de leigo, embora amante das letras, acerca do romance – ou outra coisa qualquer que se lhe queira chamar – escrito pelo genial criador russo-americano Vladimir Nabokov.
Da publicação
«Convite para uma decapitação» foi publicado em russo em forma de folhetim entre os anos de 1935 e 1936. Em 1959 foi publicado em língua inglesa nos Estados Unidos sob o título «Invitation to a Beheading». Finalmente, a notável editora Assírio & Alvim publicou-o, pela primeira vez na língua de Camões, no início deste ano (2006) [referência completa: Vladimir Nabokov, Convite para uma decapitação, Assírio & Alvim, Fevereiro de 2006, 217 pp. Tradução do inglês por Carlos Leite].
Da literatura comparada e dos críticos
No prefácio da edição portuguesa – escrito originalmente aquando da sua publicação no ano de 1959 nos Estados Unidos – Nabokov, no seu melhor estilo, truculento e polémico, diz que os críticos «julgaram distinguir neste livro uma veia kafkiana, sem saberem que eu não sabia alemão, que era completamente ignorante da literatura alemã moderna e não lera ainda nenhuma das traduções francesas ou inglesas das obras de Kafka» (pág. 9) dando a estocada final quando refere que as «afinidades espirituais não têm lugar no meu conceito de crítica literária, mas se tivesse de escolher uma alma afim, seria certamente esse grande artista [Kafka], e não G.H. Orwell ou outros populares provedores de ideias ilustradas e ficção publicitária» (pág. 10). Daí a minha propositada interrupção no início deste texto.
Do conteúdo
Sem querer revelar muito mais, já que, decerto, estragaria o prazer da sua descoberta, «Convite para uma decapitação» é uma brilhante alegoria sobre a coarctação da liberdade de expressão e do livre pensamento numa sociedade massificada sob a alçada dos valores e dos princípios dimanados pelo poder instituído. O pobre protagonista, Cincinnatus C., é condenado à morte por decapitação pela perpetração do crime de “torpeza gnóstica”.
Mas o que é a "torpeza gnóstica"? O narrador não a refere cabalmente, porém convida-nos a perscrutá-la durante o desenvolvimento da narrativa, repleta de personagens surreais com comportamentos estranhos, embora socialmente aceites, que giram em torno do condenado como um mostruário da vacuidade da sociedade na qual se inseriu antes da pronúncia da sua sentença. Todo o discurso é desconcertante, episódios surreais sucedem-se em cadeia, porém a opacidade de que Cincinnatus é acusado vai-se revelando nas cartas que vai escrevendo, com o toco do lápis roído na ponta, durante a estadia na sua cela. São os sentimentos e comportamentos típicos de um ser humano saudável: as memórias da infância, os afectos, os medos, as angústias, as paixões, o amor nas suas diversas manifestações, os sentimentos de justiça, de lealdade e de fraternidade.
Avaliação final
Diga-se o que se disser, venha quem vier, este romance é uma obra-prima sob todos os aspectos que deverão presidir à apreciação de uma obra literária que me desobrigo de enumerar porque advém da minha tão subjectiva, e por isso tão válida como outra qualquer, bitola literária.
Relativismos!